O olhar maroto do adolescente. A gargalhada da Yonete no café da manhã. O sofrimento da amiga com aquelas olheiras bem no dia do noivado. O movimento nervoso das mãos do colega a cinco minutos da apresentação. Os dentes mordendo a manga. A textura, o sabor. Os pulos de alegria do menino: “Mamãe, você está feliz?”
O ser humano, seus risos e choros, seu mistério, sua esperança e desesperança, sua história por trás da história.
Minha curiosidade pelos caminhos e descaminhos do ser humano é insaciável. É infinito meu encantamento com nossa capacidade mágica de sonhar, perder o pé, mudar tudo numa fração de segundo.
Mergulhar na névoa desses universos e emergir com novas visões é, para mim, fonte contínua de inspiração.
De repente, na bagunça da metrópole, a praça. O balanço, a gangorra, a muda recém-plantada, a árvore. Junto da natureza, cala-se a tolice dos pensamentos. Silenciosa inspiração.
Minhas ideias nascem de tantas naturezas. Sim, claro, o quadro, a escultura, a música, aquela frase daquele livro, a têmpera de um certo personagem, a trilha do filme, os cursos que fiz e os que vou fazer, o design da cadeira, algo que percebi numa fração de segundo, o revirar de minha história. Em tudo isso, que outra inspiração senão a magia da vida?
Desde muito pequena, tenho os olhos maiores do que a barriga. Meu olhar tem fome de inesperado e beleza. Adoro boas surpresas e elas me aparecem o tempo todo. Na calçada suja, com a chuva caindo, uma gelatina linda e colorida, dessas que a gente compra no bar, se revela desembrulhada e me enche os olhos de delícia. No encontro com o worldwide chairman da multinacional, o menino que ele foi, com seus sonhos e inseguranças, atravessa a armadura corporativa daquele homem e vem por inteiro até meus olhos; e aprecio tanto esse menino, e me pergunto se o homem na armadura se lembra dele, convive com ele. A rigidez de um, a suavidade do outro, tudo no mesmo ser, é fascinante fonte de inspiração.
Meu olhar se transmuta através dos anos. O que me faz rir, o que me faz chorar, o que me emociona muda tantas vezes!
Um dia, conversando com a maga, contei de minha aversão a estruturas rígidas, grandiosas, previsíveis. Contei o quanto o mundo profissional pode tentar nos aprisionar. Contei mais: que às vezes me sentia como um peixe capturado por uma rede, em pleno oceano, imerso em toda aquela imensidão… mas dentro da rede. E a maga respondeu: “Mas você não é o peixe. Você é o oceano.”
Somos todos oceanos. Não há limites para o eterno inspirar, expirar, inspirar, expirar.
Os hinduístas, que acreditam em Shiva, deus da destruição e renascimento, dizem que ele, em sua respiração, inspira tudo, transmuta internamente e expira só o que é bom. Essa metáfora é mais uma das tantas que me inspiram. Criar é uma devolutiva para o mundo. É o ato de expirar às avessas: não o gás carbônico que nos sai pelo nariz, mas a fotossíntese do que vimos e sentimos.
De repente, no amanhecer, abro os olhos, deitada ainda na cama, e lá está ela. Uma tela que você chamaria de imaginária, transparente, de 1,20m x 0,80m, solta no ar, bem na frente dos meus olhos. Leio ali respostas a diferentes indagações, ideias, insights, novas estratégias. Faço download, anoto tudo. Isso mesmo: Alguém me passa uma cola. Sempre foi assim, desde quando eu tinha 17 anos e roía as unhas de medo do diretor de criação que esperava um novo texto às 9 da manhã do dia seguinte.
Tenho forte conexão com o Grande Criativo, fonte da vida e de todas as grandes ideias. Temos um relacionamento profundo e livre, totalmente desestruturado, sem religião.
Eu, tu, Ele, nós, vós, eles: pessoas, rios, montanhas, flores, estrelas, pedras, legumes, frutos e animais. Tudo que cura, tudo que dói me inspira.
Christina Carvalho Pinto é presidente do Grupo Full Jazz