De toda a minha formação – desde a pintura, a literatura e a religião, à faculdade de administração – nada foi tão importante para minha carreira publicitária como minha experiência no mundo das artes marciais. Isso talvez seja difícil de entender para quem nunca entrou num tatame, num ringue, em uma roda… Artes marciais não têm artes no nome à toa: ao mesmo tempo que são uma forma de defesa (e agressão), são também uma incrível maneira de expressar sua individualidade através do corpo. Como a dança.

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Lembro que meu professor me explicou que a tradução de kung fu era “habilidade suprema, adquirida através de trabalho árduo”. Por muito tempo, isso não teve muito a ver com propaganda, a não ser que você queira dizer que uma boa campanha precisa ter a disciplina de um monge shaolin. O sentido mesmo, no entanto, dominar a técnica, o craft, desenvolver o senso estético, o julgamento criativo etc., essas coisas por décadas ficaram na gaveta.

No tempo de revolução tecnológica da propaganda, o progresso pela técnica funcionou. O ciclo do mercado voltou à ideia de que o que vale é a técnica, a ciência. Arrumar o algoritmo perfeito era o necessário para se chegar ao resultado correto. Assim como no mundo marcial, a proposta de decorar uma sequência de movimentos já funcionou. Mas, funcionou somente até quando o oponente passou a entender e não concordar com o “roteiro”. Aí, o jogo virou. A originalidade criativa voltou a ser importante, como é na propaganda. Prevalece o fator supresa.

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O resultado: entre a manada de marqueteiros técnicos, os que subiram aos grandes postos, os que viraram CMOs, ou muitos deles, foram exatamente os que investiram em aprimorar seu gosto, sua visão, sua perspectiva (sem nunca deixar de entregar resultado, diga-se já, isso é para qualquer um). Olhem, por exemplo, os CMOs mundiais de grandes marcas. O de AirBnB, por exemplo, é um dos sujeitos por trás da revolução criativa de Coca-Cola. Assim como o CMO mundial de Samsung. O do Banco UBS foi o sujeito por trás do Beauty Inside, para Intel. O de Burger King, Fernando Machado, brasileiríssimo, foi o cliente em Dove Sketches. Todos eles elevados a novos empregos, novas posições e ao estrelato internacional por grandes trabalhos, destacados pela sua criatividade.

Não é de se surpreender que, hoje, tantos anunciantes têm tanta pressa para educar seu gosto. Depois de passar anos bradando a praticidade da técnica, se viram ultrapassados por seus pares que investiram duro na criatividade. Por isso nunca se viu tanto cliente em festivais como Cannes como se vê atualmente. Porque eles estão na corrida para aprimorar seu julgamento, o que é um esforço louvável e celebrável (eu mesmo vou todo ano por isso mesmo, nada além). E por isso também, o mercado internacional nunca viu tanta oportunidade criativa, tantas marcas tradicionais e de sucesso pedindo para suas agências que lhes entreguem trabalhos que possam competir em premiações internacionais.

Não porque ganhar prêmio seja uma meta. Assim como para um lutador não é objetivo se manter numa mesma posição por mais de uma hora, como meu shifu me manda fazer de vez em quando! O que ocorre é que o prêmio é a evidência de que esse treinamento duro, essa disciplina criativa, está chegando a um nível de “habilidade suprema.” Isso mesmo que estou dizendo: prêmio é kung fu. Tanto para a agência quanto para o anunciante.

Em contrapartida, simplesmente ir ou estar em um festival, não. Passar pela Riviera Francesa e voltar sem fazer nada que se destaque é igual assistir aos filmes do Bruce Lee e ir comentar luta do UFC escondido atrás do teclado. Kung fu está na capacidade de treinar e fazer de verdade. Não em saber como é na teoria ou fazer trabalho que parece bom, mas que não aconteça pra valer (o equivalente disso nas lutas são essas pessoas que quebram tijolo com as mãos, mas não sabem atacar nada que se mova). Talvez no Brasil se enxergue essa necessidade com menos clareza, porque estão todos tentando lutar contra a crise e às vezes isso nubla um pouco os olhos em relação às oportunidades além das nossas fronteiras. Os mais ambiciosos, porém, aqueles que pretendem se destacar e galgar posições internacionais, darão um jeito. Assim como no filme clássico A Câmara 36 de Shaolin, o aprendiz tem de provar sua técnica em situações extremas e sair do outro lado, vivo, antes de ser considerado mestre.

Pereira é sócio-fundador da Pereira & O’Dell, escritor, faixa preta segundo grau de shao shin hao kung fu, instrutor de wing chun e faixa marrom de karatê. Ele dá aula duas vezes por semana para o time da agência, em San Francisco