Acordo mais cedo que o habitual. Tento relaxar, quero voltar a dormir só mais um pouco, mas eles estão lá, me espreitando. Evito olhar, mas sei que não tem escapatória. Meu bloco e minha Bic me esperam, um texto precisa ser escrito. Os objetos são parte de um jogo, eles funcionam como um lembrete, um gatilho que deve impulsionar uma ação, que terá como reação uma recompensa. Foi assim que li num dos livros sobre ciência e comportamento que passaram pelas minhas mãos.
Mas o tema solicitado é espinhoso, fico em dúvida se sou capaz. Muita gente escrevendo verdades absolutas, pensamentos definitivos, tanta certeza e eu aqui, na juventude dos meus 40 anos, com toda a minha insegurança. Lembro-me de um texto do Medium, sobre uma tal Síndrome do Charlatão, e me identifico na hora. Mas preciso seguir adiante e resolvo dar uma de Mavis Gray, personagem da Charlize Theron do filme Jovens Adultos que assisti há algumas semanas no Netflix. Ela manipula a realidade e cria uma verdade que lhe convém. Faço o mesmo: decido que sou capaz e vou seguir adiante. Mas antes, preciso levantar da cama.
Levo as mãos em direção ao bloco, mas embaixo dele repousa Octaedro, livro do Cortázar que acabei de ler, mas que ainda não consegui me desvencilhar de suas histórias e, por isso, não posso levá-lo de volta à biblioteca. Lembro-me que um dos contos fala sobre o biógrafo de um poeta menor, que mostra ao mundo o quanto seu personagem era grandioso, mas depois da fama alcançada percebe que escreveu aquilo que gostaria de ter encontrado e não, de fato, o que deveria ter encontrado. Um dilema ético que me derruba de volta à cama e me impõe um recuo na certeza que poderia escrever algo definitivo, capaz de gerar reflexão e impulsionar compartilhamentos. Ser fonte de inspiração. Maldito prefixo ão que torna tudo maior e faz com que eu me sinta menor.
Sento na beirada da cama e, numa viagem quase lisérgica, sou levado a um dos botecos que costumo ir sozinho para bater papo com desconhecidos e descobrir novas histórias. Como numa cena de flashback de cinema volto a um papo com um senhor. Já tínhamos dividido mais de uma dúzia de cervejas, quando ele me indagou: “vocês pensam tanto no futuro, no que vão fazer, no quanto vão mudar o mundo, que acabam perdendo laços importantes que construíram no passado e a oportunidade de fazer a diferença hoje.” A porrada é forte, dói de novo. A letra de Paulinho da Viola ecoa em minha cabeça. Acesso o Spotify no celular para ouvir:
“Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado. Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado”.
Jogo meu corpo para trás na cama, esbarro e quase acordo minha mulher, coloco as mãos sobre a cabeça como se voltasse a mim e… percebo que o tema não é tão complicado. Porque falar sobre inspiração é falar sobre a vida, experiências reais, tudo aquilo que constrói quem somos e servem como matéria-prima para nossos pensamentos e, principalmente, nossas ações. Falar sobre inspiração é não colocar essa palavra em cima de um púlpito, acessível para poucos. Sim, é isso. Minha verdade absoluta.
Meus devaneios se transformam em palavras escritas numa tela. Vejo que não estou na cama, mas sim escrevendo no computador de casa. Meus filhos passam atrás de mim, me interrompem e minha mulher me ajuda a manter a concentração. Releio as linhas escritas e percebo que usei o ponto de partida da cama por ser uma referência de um livro do Cristovão Tezza. Sou uma fraude?
Talvez todos nós sejamos. E daí? O artista Marc Brandenburg, que está expondo no CCBB, disse: “não tenho nenhuma imaginação. Tudo que procuro está aí no mundo esperando para ser visto”.