Vinícius de Morais e Antonio Maria durante as madrugadas gostavam de dar caronas aos vira-latas que encontravam na rua. Sim, vira-latas caninos, esses bichos que surgem do nada e, atrás de um resto de comida ou um afago, nos adotam nas noites vadias. Eles andavam de Cadillac conversível, o conhecido “rabo de peixe”, modelo supremo do sonho de consumo automobilístico da época.

A mordomia dedicada aos bichos incluía, além do passeio (que, diga-se de passagem, os cães dispensariam), bons lanches de ossos fresquinhos conseguidos em restaurantes amigos. Aí era a festa. Para explicar sua paixão por vira-latas, Vinícius dizia que não existia solidão pior do que a falta de amor. “E os vira-latas amam”, sentenciava. E ele entendia disso, como prova sua vastíssima obra. Vamos em frente.

Numa dessas madrugadas, quase amanhecendo, Vinícius e Antonio avistam um bando de velhinhos na praia fazendo exercícios, chefiados por um rapagão musculoso. De copo na mão (naquele tempo podia – primeiro porque eram Vinícius e Antonio, depois porque não havia ninguém nas ruas) ficaram observando os movimentos. Até que Vinícius diz: “Antonio, vamos fazer um pacto?”. “Claro, peça o que quiser, Vinícius”. “De hoje em diante não vamos fazer jamais um só movimento desnecessário!”.

Essas e outras histórias estão no livro Histórias de canções – Vinícius de Morais, de Wagner Homem e Bruno de La Rosa, que eu já li duas vezes.

E não foi porque não entendi da primeira vez, mas porque é uma fonte inesgotável de poesia, saudade e humor. Mais uma historinha. Desta vez Vinícius e Carlinhos Lyra. Vinícius está mostrando a Lyra uma letra para a peça Pobre menina rica. Declama o imortal Samba do carioca, que marca o despertar de um mendigo que mora em Copacabana (“Vamos, carioca, sai do teu sono devagar / o dia já vem vindo / o sol já vai raiar / São Jorge, teu padrinho / te dê cana pra tomar / Xangô, teu pai / te dê muitas mulheres para amar…”). Em seguida, conta que o mendigo (mendiguinho, segundo o poeta), vendo numa cobertura a pobre menina rica, se apaixona (“O meu amor sozinho / é assim como um jardim sem flor / Só queria poder ir dizer a ela / como é triste sentir saudade / É que eu gosto tanto dela / que é capaz dela gostar de mim…”). Lyra acha lindo.

Daí, Vinícius continua, pois a menina lá de sua cobertura responde ao tal mendiguinho: “Não há amor sozinho / É juntinho que ele fica bom / Eu queria dar-lhe todo meu carinho…” e termina: “Amor que eu tanto procurei / ah, quem me dera eu pudesse ser / a tua primavera / e depois morrer”. Daí Carlinhos não aguenta. “Porra, Vinicius! Você acha que alguém vai acreditar que uma menina rica, moradora de cobertura, se apaixone por um mendigo?” Vinícius fica indignado com a falta de sensibilidade do parceiro: “Por que não, Carlinhos? Era primavera!”.

Segundo eu sei, e está registrado no livro de Marcos Vasconcellos Brasil – a marca da zorra, Vinícius foi mandado embora do Itamaraty por um bilhete do então presidente Costa e Silva: “Demitam este vagabundo”. Já que estou citando, vou concluir com uma frase de Carlos Drummond de Andrade sobre Vinícius: “Entre nós (poetas), ele foi o único que viveu como poeta”.

***
Serei apenas mais um, fazer o quê? Pessoas de melhores qualidades estéticas e literárias de que eu já falaram da abertura das Olimpíadas. Junto-me a todos nos aplausos, acrescento alguns gritos. Mas, veterano jurado de desfile de escola de samba, tenho algo a acrescentar.

Sim, o mundo viu o espetáculo deslumbrante. O que não podemos esquecer é que há um know-how, uma cultura, um terroir embutido naquilo tudo. Esse conhecimento levou 30 anos para ser construído. Fico ofendido quando alguém afirma que mais uma vez ficou provada a capacidade de improvisação do brasileiro.

Aquela abertura custou meses de ensaios milimetricamente ajustados, assim como as escolas de samba já estão se preparando para o desfile do ano que vem. Se é uma coisa que nós não deixamos para o improviso é esse tipo de espetáculo, com multidões atuando. Somos especialistas!

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)