Como meus argutos leitores devem ter percebido nestas décadas de convívio, não sou um Machado de Assis, nem Rubem Braga, Sergio Porto, Artur Xexéo, Cora Ronai, Joaquim Ferreira dos Santos ou Veríssimo. Ou seja, não sou cronista. Para falar a verdade, nem me considero contista ou articulista. Pelo menos não no nível de qualidade de alguns escritores que se propõem a escrever em jornais e revistas falando do cotidiano de suas vidas e do mundo.

Rubem Braga, por exemplo, esse monumento que se estivesse vivo estaria completando 100 anos, pegava um fato corriqueiro, desses bem vãos, como o nascimento de uma espiga de milho em sua cobertura ou as cores das saias das moças e, com esse material, fazia uma profunda reflexão sobre a vida. No meu caso, mesmo tendo como assunto o afundamento do Titanic ou o incêndio de Lisboa, mal consigo vencer o bocejo de um incauto leitor. Uma repórter de O Globo está fazendo uma pesquisa, que pretende virar livro, sobre as crônicas escritas por grandes mestres sobre a falta de assunto que acomete periodicamente a todo mundo que tem de escrever para jornais e revistas. Um tema (ou antitema) tão banal, dependendo do talento de quem o aborda, pode virar um material delicioso. Nelson Rodrigues, Machado, Braga, Pongetti, Danuza, Joaquim Ferreira dos Santos, Drummond, Vinícius e muitos outros já escreveram sobre essa broxada momentânea. E ficaram leituras deliciosas. Estaria eu com falta de assunto?

Não. Pelo contrário, estou até com assunto. O problema é não saber como começar e como transformar o tema que me vem à mente em algo legível (que não quer dizer apenas capaz de ser lido, mas também merecedor de ser lido, obrigado Huaiss). É o seguinte: estou saindo do hospital, onde estive internado por conta de uma pneumonia bravíssima. Uma bactéria parruda resolveu fazer morada em meu pulmão e criou uma família quase indestrutível nos meus pobres alvéolos, que por pouco não pedem demissão. Por consequência, tomei alguns barrís de antibióticos que mataram a desgraçada da bactéria e quase me levam junto.

Agora, já fingindo que estou trabalhando, tive de entrar numa dieta absurda, que deve durar pelo menos mais dois meses, o que, segundo a teoria da relatividade, significam uns dez anos. Estou comendo exclusivamente saladinhas e legumes, iogurtes e purezinhos. E, o que é pior: não posso beber uma única gota de álcool. Em outras palavras: almoço e janto tomando água. Sem gás. Eu disse que almoço e janto. Mentira: pasto. Pasto e sofro. Tem sido assim em casa e fora dela, onde percebo o olhar de pena dos velhos amigos garçons dos restaurantes que frequento. E o mais doloroso é que o mal que me pegou não tinha nada a ver nem com álcool nem com o meu passado ogro. É um problema de restabelecer uma certa harmonia dentro do meu corpo, completamente esculhambado pela luta contra a tal bactéria. Para que estômago, rins e fígado não sofram de uma carga insuportável de trabalho, é preciso oferecer-lhes férias. Tenho vivido de chuchuzinho, alface e beterrabinha.

Minha cozinheira tem tentado ajudar, inventando soluções dentro da dieta, com aparência e sabor um pouco mais aceitáveis. Tenho engolido hambúrgueres de soja, omeletes de claras, capeletes de folhas de repolho recheados com queijo Minas frescal nadando em brodo de legumes e outras invenções que pretendem me fazer esquecer das costelas no bafo, dos leitãozinhos à pururuca ou dos penne a la rabiata. Debalde. Essas coisinhas bonitinhas são o que são: bonitinhas, saudaveizinhas, mas insossínhas. Fazem me sentir numa UTI permanente. Isso tudo seria mais ou menos suportável se para acompanhar as refeições eu pudesse dispor dos serviços de um vinhozinho. Beber exclusivamente água é sacrifício demais. Como diria W.C. Fields: “Eu não bebo água. Peixes fodem nela”.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)

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