Previno desde já que me inspirei numa antiga crônica do Veríssimo para as mal traçadas linhas que se seguem. O contexto é, como se verá, diferente. Mas a trama é dele. Afirma que Jó estava em seu barraco quando ouviu no rádio as notícias sobre o mensalão. Boqueabriu-se e não conseguiu boquifechar. O que o diretor da Petrobras dizia que tinha retirado à sorrelfa era umas três vezes o orçamento do município onde vivia. Ou melhor, morria de fome, pois era Jó muito pobre. Ao saber dos valores, saiu correndo até o campo em frente sua choupana e gritou para os céus: “Oh Deus! Ouvi-me! Destes-me todos os sofrimentos possíveis, a tudo suportei, sabendo que eram seus designos para testar minha fé. Pusestes-me no mundo como brasileiro, ainda por cima nordestino, me mandastes a seca, os coronéis, os vereadores, os deputados e a febre terçã. A tudo transformei em prova de amor. Mas a Petrobras, senhor, a Petrobras! É o que resta de orgulho para vosso povo. Destruíram a Petrobras, meu Deus!”. Das nuvens um clarão apareceu e a voz de Deus, muito parecida com a do Cid Moreira, envolveu todo o espaço.
“Jó, disse Deus, é mais uma prova que ponho no teu caminho e no caminho daqueles que creem em mim. Suportai mais essa dor. Perdes a Petrobras, mas constróis mais um pedaço do caminho para a vida eterna. Voltai para casa. Aguardai”. Jó arrependeu-se e voltou para o casebre onde lhe aguardava a mulher grávida e os filhos barrigudinhos de vermes. Mas vinha iluminado. Meses depois estoura a Lava Jato. Ao ver que as autoridades envolvidas eram quem faziam as leis no país, mas estavam metidas nas transações, enfrentou uma tempestade de areia em busca de alento. Deus nem esperou sua fala. Já foi dizendo:
“Jó, meu filho, sei de tudo do que acontece nesta terra que te dei como berço, assim como conheço sua alma e sei o que me tens a dizer, mesmo sem tê-lo dito. Suportai é o que lhe digo. Tudo que há no mundo tem uma razão de ser. O tempo em que vives diante da eternidade é um átimo. Suportai e orai. Sou teu Deus. Um dia saberás por que as coisas são como são. Ide!”. E Jó voltou, com a certeza de que Deus sabia o que estava fazendo. Começou a pensar que afinal de contas o INSS, o SUS, os 7 a 1 contra a Alemanha, a transposição do São Francisco, a Ferrovia Norte Sul, o sertanejo universitário, o Eduardo Cunha, todos e tudo, tinham um propósito. E se consolou na sua fé. Suportou os salários dos parlamentares; a Câmara Municipal e o prefeito de sua cidade, que tinha 30 mil habitantes e 20 mil funcionários; os fiscais do Ibama, que lhe multaram por cortar um pé de xique-xique e por comer um calango; a falta de médicos no posto de saúde, de professores na escola e de polícia onde deveria ter polícia. Quieto, como deve ser um escolhido, ele viu coisas que por momentos lhe pareceram que até Deus duvidaria. Se era para fazer merda, mesmo estando escrito no livro divino, o pessoal estava caprichando.
Será mesmo que precisava a Dilma falar francês? Precisava o Temer achar o Alvorada um lugar inóspito, depois de torrar uma grana para a madame mudar a cor dos estofados e o guri ganhar uma rede de proteção? Até que tudo chegou ao máximo. Semana passada Jó ouviu que os frigoríficos estavam envolvidos numa treta federal. Mesmo acostumado à carne de sol e a chupar aguinha de cacto, achou uma tremenda sacanagem o que estavam fazendo com a mortadela que ele comprava para as ocasiões especiais. Sentiu um golpe no estômago ao pensar que a linguicinha que de vez em quando boiava feliz dando sabor ao feijão era falsificada. Até acreditou na história de que a maioria dos matadouros não fazia mutreta. Mas ficou sabendo que quem nomeava e pagava os fiscais eram os fabricantes de embutidos. Saiu correndo e foi para o descampado. Precisava ouvir Deus, sentia que sua fé estava abalada. Ele era um homem, tinha seus medos e suas dúvidas. Foi em busca da voz e da proteção Dele. No meio do deserto, entre os restos da obra abandonada da ferrovia, do canal da transposição e de um viaduto, olhou para cima. Como sempre, o céu se abriu. As nuvens se afastaram como no teatro, uma luz se derramou pelo chão sofrido, e a voz disse: “Jó, se manda daí!”
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor