Todo contador de histórias dia ou outro se repete. Bom ouvinte não exige casos inéditos o tempo inteiro, além do que a plateia se renova. Este caso que vou contar já esteve nas páginas do PROPMARK há algumas décadas e eu gosto tanto dele que peço licença para repetir. Cada vez que tomo esta liberdade, recebo e-mails reclamando. A estes, peço desculpas, mas peço também que entendam que até para um escriba menor se achegam novos seguidores e desta vez vale a pena.
No Rio de Janeiro existe um restaurante chamado Fiorentina, onde todas as noites se reuniam artistas de cinema, televisão e teatro. Seu esplendor foi nas décadas de 1950 e 1960, quando o Rio era o maior centro de produção artística do país. Dá para imaginar as histórias que aconteciam ou que eram contadas em suas mesas. E atraídos pelos nomes famosos, o Fiorentina recebia também as mais belas mulheres da cidade, vedetes do teatro rebolado, figurantes de chanchadas carnavalescas e algumas das melhores e mais conhecidas cortesãs da cidade. Cortesãs, sim, não putas nem modelos-manequins. Gente da maior finura, amantes de senadores e deputados que, se não eram melhores que os atuais, eram pelo menos mais elegantes.
O Fiorentina recebia também grandes celebridades do mundo inteiro, embora fosse tradição da casa não se empolgar com gente famosa alienígena. Dizia-se até que Charlie Chaplin ou Orson Welles, se aparecessem mais de duas vezes na Fiorentina, seriam esnobados na base do “disfarça que está chegando aquele chato”. O Rio já foi assim. Agora faz rapapé até pra ex-BBB. Mas, continuando. Daniel Filho me contou que uma vez estava numa mesa com Edu da Gaita, Aurimar Rocha e Paulo Pontes e o assunto eram memórias da infância. Os trabalhos foram devidamente abertos com o próprio Daniel contando que uma vez sua bisavó foi convidada para montar um dos cavalos de D. Pedro II na Hípica Imperial e, enquanto a senhora evoluía pela pista, o imperador gentilmente carregava o filho dela, futuro avô do narrador.
O melhor de tudo é que o garoto, a certa altura, fez um alegre xixi na roupa de D. Pedro II, que teve de mandar pedir no palácio outra calça de montaria. Ou seja: o avô de Daniel, com seis meses de idade, já se revelava um republicano convicto, capaz de colocar o imperador numa situação delicada. O Paulo Pontes, com a cara amarrada de nordestino bravo, vestindo umas sandálias de couro parecendo figurante de filme de cangaceiro, ouvia com expressão de infinita tristeza.
Daí o Edu da Gaita contou que tinha feito uma música sobre um poema de Pablo Neruda e, quando tocou para o Portinari, Candinho ficou tão encantado que fez imediatamente um quadro inspirado na composição. E que o Neruda, mais tarde, conhecendo a música e a história, autografou o quadro com uma Pilot, agradecendo a homenagem. Ou seja: Edu tinha em casa um quadro de Portinari com autógrafo do Pablo Neruda. Paulo Pontes ouvia calado. Daí Aurimar Rocha contou que quando era menino morava na Rua Paissandu, caminho habitual de Getúlio Vargas indo para o Palácio do Catete.
Aurimar garantiu que toda vez que o presidente passava, ele ficava em posição de sentido, batendo continência. E Getúlio retribuía a saudação, também solene. E, em seguida, o garoto e o ditador trocavam umas ideias. E Paulo Pontes cada vez mais acabrunhado. Quando chegou a vez dele contar sua história, não pareceu encontrar nada de empolgante. Ficaram todos esperando ele cavoucar na memória alguma coisa à altura de um imperador molhado, um quadro de Portinari autografado pelo Neruda ou do garoto amigo do Pai dos Pobres. Depois de muito tempo pensando, Paulo pediu uma birita, olhou o mar, pigarreou, acendeu um cigarro e começou: “Eu tenho um primo, lá na Paraíba, que comeu o cu do Lampião…”
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor