Muitos anos atrás, criamos uma campanha para lançar uma série de fascículos para a Editora Globo chamada ‘‘Mundo em Guerra”, sobre os grandes conflitos mundiais na era moderna. O filme de lançamento era um clipe de cenas de combate, que se repetiam num mesmo gestual, mudando apenas o uniforme e as armas utilizadas.
Discutiu-se muito se não era o caso de simplesmente comprarmos as imagens de agências de notícias em vez de investir na recriação de cenas de guerra, mas a conclusão foi a de que, para respeitar o impacto proposto pelo roteiro, o melhor era filmar novamente para que a ideia fosse rapidamente percebida pelo telespectador.
Foi uma superprodução à altura do produto, um portentoso trabalho de um consórcio internacional de editoras. Na verdade, precisamos vestir e equipar, com toda a riqueza de detalhes, uns quarenta figurantes. Eram soldados e oficiais de uns dez exércitos diferentes, cobrindo um século inteiro.
Minha mulher era diretora de arte do filme e ficou encarregada de fazer a mais exata reprodução de uniformes e armas. Os soldados deveriam ter o biótipo de cada nação envolvida e os equipamentos se aproximar o mais possível da realidade.
Silvana é uma detalhista e, exatamente por isso, os figurantes do filme se vestiam com mais exatidão do que provavelmente o fariam na vida real. O exército alemão do início da Segunda Guerra era uma perfeição, vestido com uniformes rigorosamente reais, fruto de exaustiva pesquisa que não esqueceu nem de pequenos detalhes como símbolos de companhias, armas e munições, sobretudos, mochilas, cantis e o escambau. E foi exatamente nas hostes nazistas que se deu o problema que vou contar.
Um alemãozão alto, de olhos azuis, impecável na condição de oficial do Wermacht e, por puro acaso, um tremendo gay, foi ferido de verdade durante uma tomada. Coisa pouca, mas infelizmente na orelha, o suficiente para produzir uma tremenda quantidade de sangue. Como a quase hemorragia não parava, os improvisados enfermeiros da filmagem resolveram levar o artista, já quase histérico, até o Hospital Miguel Couto.
Esse hospital é atualmente uma esculhambação total, normalmente faltando tudo, mas lá trabalham alguns dos melhores médicos do Rio, herança do tempo que o Miguel Couto era uma referência nacional.
Para se ter uma ideia, um dia caiu-me um poste no joelho e eu fui costurado a seco. Maravilhosamente bem costurado, mas a seco, já que a porra do nosocômio não tinha anestesia local. Não sei se agora as coisas já melhoraram por lá, mas que aconteceu assim, aconteceu. Voltando ao nazista ferido.
Imagine a cena. Três horas da manhã, em meio a bebuns, mendigos, esfaqueados, baleados, assaltados, enfim, a miséria humana que a madrugada junta nesses lixões da vida como delegacias e hospitais, chega uma picape trazendo um oficial do exército alemão cheio de sangue amparado por dois aviadores americanos de Pearl Harbor, um japonês submarinista e um cavaleiro polonês. Não era carnaval, o que tornava tudo muito estranho. Parou o hospital todo. Que merda seria aquela?
Pois bem, o alemão quase transforma tudo em verdadeira tragédia. Na hora de fazer a ficha, o enfermeiro de plantão, com humor natural de quem vive naquele lugar e é obrigado a trabalhar às três da manhã, pergunta ao nazista o que tinha ocorrido. O ensanguentado guerreiro, assumindo seu papel, levanta-se da maca, revira os olhinhos azuis-celestes e declara: “Só digo meu número e o meu batalhão. Sou um prisioneiro de guerra!”. E desmaia.
O tumulto chama a atenção do policial militar do turno. Inicia-se um bate-boca entre os diversos militares de várias nacionalidades e diferentes eras. Foram alguns bons minutos de todo tipo de ameaças, incluindo cargas de cavalaria por parte do falso polonês, que deve ter recebido algum espírito beligerante.
O pior não foi isso. Por insondáveis mistérios do coração, após voltar a si, o nazista acabou se apaixonando pelo policial e resolveu contar toda a sua longa vida de modelo (e eventual bailarino). Quase levou porrada de verdade do japonês submarinista e dos aviadores americanos, a essa altura loucos para voltar pra casa.
Como nos filmes de guerra. No final, o comercial ficou belíssimo e ganhou até prêmios. Mas quem prestou atenção notou um tremendo erro histórico. O soldado alemão usava o dólmã da marinha italiana.