Era um sábado de sol no Rio de Janeiro. Eu trabalhava no centro da cidade e tive que passar no escritório para ver uma campanha. No almoço notei uma correria do outro lado da rua. Me contaram que um pedaço da marquise do edifício em construção – era a sede da Caixa Econômica – tinha desabado sobre um passante. O cadáver ficou na contramão, atrapalhando o tráfego e o sábado, como na música de Chico Buarque.
Não tenho muita curiosidade para essas coisas, mas na volta tive que passar pelo morto, a esta altura coberto com um pano preto (um saco de lixo?). Ao seu lado, junto às velas, via-se um pacote de queijo minas meio esmagado.
Não consegui tirar a imagem da cabeça. O queijo minas, que o coitado devia estar levando para casa, complemento da goiabada, para dar um toque mais sofisticado na boia do fim de semana. Na minha imaginação eu via a família esperando, mesa posta, fazendo os cálculos do tempo que ele levaria da loja (eu achei que ele era caixeiro) até a casinha do subúrbio.
O comércio do centro fecha à uma da tarde, naquele tempo lá pelas duas o queijo já deveria estar cumprindo seu papel de Romeu junto à doce Julieta que, fossem gourmets os comensais, seria uma magnífica cascão, doce de doer. Mas nunca mais aquele homem iria gritar na soleira: Cheguei!
Aquele fim de semana normal seria transformado em tragédia. Não estivesse o queijo tão danificado como quem o portava, seria de boa ajuda na preparação do lanche do velório, acompanhando a pinga da madrugada.
Mas os dois – queijo e portador – já não serviam para mais nada. Nessas horas é inevitável nos colocarmos na situação do outro. E eu me vi chegando – já em forma de cadáver – na capela do cemitério. E um amigo dizia (eu ouvi claramente) “ainda ontem ele me falou que ia sair de férias”.
A vida é assim, um dia fazendo planos e outro dia na horizontal, com terra por cima. Cheguei a pensar num epitáfio engraçadinho: “Arte Final”. Sim, porque ao longo da vida não passamos de leiautes.
Pois bem, parece mentira, mas uma semana depois eu estava atravessando a mesma rua (Almirante Barroso, esquina da Rio Branco) quando lá do alto, mais ou menos do trigésimo andar, cai um enorme pedaço de madeira e passa raspando por mim, a centímetros de minha cabeça. Não exagero um milímetro: a tora pousou aos meus pés. Um nada para cá e minha cabeça teria virado paçoca.
Volto aos dias de hoje. Setembro no Rio. Sábado. Há alguns minutos uma Kombi perdeu a direção, subiu na calçada e colheu um sujeito. Seu corpo ficou imprensado junto à pilastra. Numa gaiola ele levava um filhote de cachorro. Que nada sofreu. Devia ser um presente para o filho ou filha.
Alguém de boas intenções buscou nos bolsos do morto um documento, um endereço. Era longe, muito longe. Longe demais para se levar o cachorro. Que ficou sob a guarda do homem da banca. Uma hora qualquer alguém daquela família virá buscar o filhote e levá-lo para casa.
Nenhuma dessas histórias quer dizer nada. A não ser que a vida continua.