O jogo de mais e menos prossegue. Mais progresso, mais evolução, mais tecnologia e riscos substancialmente reduzidos, mas, quando acontecem, menos iniciativas, menos espontaneidade, menor capacidade de improvisação, reação e sucesso. O voo 447, isso mesmo, aquele em que um Airbus A330-200 da Air France mergulhou no oceano, na noite de 31 de maio para 1º de junho de 2009, totalizando 228 mortos – 216 passageiros e 12 tripulantes – é hoje a mais emblemática referência de como mais, muito mais, quando as circunstâncias conspiram, traduz-se em menos, infinitamente menos, e as tragédias são inevitáveis.
A revista Piauí foi atrás e produziu a melhor matéria-documento sobre a tragédia – assinada por William Langewiesche e publicada na edição de novembro de 2014. William teve acesso a toda a documentação e às gravações da caixa-preta, chegando à seguinte conclusão: “Um pequeno defeito derrubou o voo 447, a breve perda de indicações de velocidade do avião – uma simples falha de entendimento de uma anormalidade, durante um voo estável, reto e nivelado. Os pilotos foram completamente atropelados pelas circunstâncias”.
Antes de prosseguir, recomendo a todos a leitura da matéria: simplesmente brilhante. Mas, continuando, a crônica da morte anunciada começa em 1987, quando a Airbus decidiu adotar o caminho dos aviões pilotados sem ligações mecânicas – fly-by-wire airliners. Os primeiros aparelhos foram os A320. Neles, os computadores interpretam os movimentos das alavancas dos pilotos antes de procederem qualquer alteração nas superfícies de controle das asas e da cauda. Idêntica decisão foi adotada pela Boeing anos depois. Sucesso total! Desde então a taxa de acidentes literalmente despencou a tal ponto que alguns postos de trabalho do NTSB – National Transportation Safety Board – foram eliminados por falta de serviço.
Na matéria de William a explicação da engenheira industrial e professora da Michigan University, Nadine Sarter: “À medida que o nível de automação cresce, a carga de trabalho diminui. No entanto, se por algum motivo a automação falha, paga-se um preço alto”. Ela conclui e recomenda que “precisamos pensar se existe um nível em que os consideráveis benefícios da automação podem ser obtidos, mas, caso ocorra algo de errado, o piloto ainda seja capaz de lidar com o problema”.
Curto e grosso. Caminhamos para a situação ideal: num mundo onde os poucos acidentes – estatisticamente desprezíveis, mas, para as famílias dos que morrem, brutais – são causados, em 99% das situações, por interpretações e/ou ações equivocadas dos pilotos, alcançaremos a perfeição quando os aviões prescindirem de pilotos e forem 100% comandados pelas máquinas.
De certa forma, é o que acontece com todos nós num mundo onde estamos perdendo, dia após dia, a capacidade de reagir diante do imprevisto, na medida em que tudo o que precisamos fazer é apertar dois ou três botões. Que as circunstâncias e o inusitado apiedem-se de nós e nunca cruzem nossos caminhos – não saberemos o que fazer. Como aconteceu com os que comandavam o voo 447.
* Para entrar em contato com o autor, escreva para o email famadia@mmmkt.com.br