Cem anos depois de seu nascimento, em 23 de agosto de 1912, e 32 após sua morte, sob vários aspectos o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues praticamente tornou-se a tal “unanimidade” que sempre criticou e considerou “burra”, em sua célebre frase. Celebrado Brasil afora, o nome virou jargão e sinônimo de tudo o que é sórdido e pervertido na alma humana, em especial a carioca, que ele soube como ninguém retratar em seus folhetins, crônicas e peças. Goste-se dele, ou não.
As coisas não foram fáceis para o mais carioca dos pernambucanos, embora muitos acreditem que Nelson teve moleza porque seu pai era dono do jornal A Manhã, onde começou como repórter policial. A estreia de sua primeira peça, “A mulher sem pecado”, em 1941, quando ele tinha 29 anos, foi um fracasso. E durante quase toda a sua vida, Nelson arrancou, em proporções mais ou menos iguais, aplausos e vaias do público.
Nelson viu seu irmão, Roberto, ser assassinado dentro da redação do jornal Crítica, aos 17 anos, escreveu peças de teatro, folhetins, crônicas esportivas e do cotidiano, telenovelas, viu seu filho ser preso pelo regime militar em 1972 e morreu num certo ostracismo, num 21 de dezembro de 1980. Foi tachado de tarado, gênio, reacionário, revolucionário. Criou personagens eternos, que continuam circulando pelas esquinas do Rio, tão memoráveis quanto os clássicos personagens de Shakespeare, Ibsen e Strindberg: maridos traídos e traidores, ninfetas sensuais e mulheres insaciáveis.
“Quando a visão de mundo e o estilo de um artista ganham o status de adjetivo é porque de alguma forma ele transcendeu seu tempo e sua cultura. ‘Shakespeareano’ e ‘dantesco’ nos remetem imediatamente a um determinado conjunto de significados. Da mesma forma que ‘rodrigueano’. Poucos autores conseguiram esse feito. Nelson Rodrigues, a partir da alma carioca, conseguiu dramatizar os conflitos universais da humanidade”, comenta Flávio Cordeiro, sócio e diretor de planejamento da Binder. Sergio Valente, presidente e diretor de criação da DM9DDB, diz que Nelson Rodrigues talvez tenha sido o primeiro artista verdadeiramente convergente da história. “Seus textos, ideias e obras podiam facilmente virar teatro, livros, crônicas, críticas, músicas, filmes”, destacou, confessando gostar do seu jeito cronista poético e sarcástico de retratar a sociedade e seus tabus.
Incompreendido em vários de seus trabalhos, Nelson escreveu em 1949 na revista Dionysos, editada pelo então Serviço Nacional de Teatro, um artigo com o título: “Teatro desagradável”, como define o próprio teatro que faz — “obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na plateia”, bradou. Ele fala do fiasco de sua primeira peça e das dificuldades semelhantes do trabalho que veio a seguir, “Vestido de noiva”, que também custou a ser viabilizado e sofreu com a crítica, pois contrariava a ordem cronológica, o “tempo dos relógios e das folhinhas”.
No texto, Nelson comenta os críticos — detratores — de suas peças e não se conforma com sua fúria. Define-se como mórbido, não como defeito, mas como marca de espírito, um tipo de criação dramática. E lança algumas pérolas para defender seus personagens, como por exemplo: “Sempre me pareceu que, para fins estéticos, tanto faz um canalha, como um benemérito. Acrescentarei mais: é possível que a importância dramática do canalha seja mais positiva”, conclui.
Acusado pela crítica de ser um “autor de um tema único”, diz que se trata de questão de gosto e de arbítrio pessoal. “Cada assunto tem em si mesmo uma variedade que o torna infinitamente mutável. Sobre ciúme, o mesmo autor poderia escrever 250 peças diferentes. Sobre o amor também. Sobre a morte, idem”, escreveu Nelson.
Autor mudou perspectiva do comportamento humano
Entre os publicitários, Nelson não foi unanimidade. Enquanto alguns dizem, categoricamente, que é imperdoável não ter lido Nelson Rodrigues, vários profissionais da área devolvem uma genuína negativa à pergunta sobre ter lido o autor. “Nunca li”, admitiram certos profissionais do mercado, alguns um pouco constrangidos. Alguns só viram suas peças. Ou uma ou outra série na TV Globo. “Nelson deu a todos nós uma perspectiva mais instigante e incômoda sobre o comportamento humano. Suas palavras cortavam. E as cicatrizes continuam cumprindo seu papel, não permitindo que nos esqueçamos dele”, conclui o redator e escritor Adilson Xavier.
Washington Olivetto, chairman e cco da WMcCann, afirma ter visto todos os filmes e lido muito Nelson Rodrigues — em especial seus escritos sobre futebol. “Adoro suas frases, sua capacidade de polemizar e seu reacionarismo mezzo ensaiado, mezzo verdadeiro. Acho que não existe ninguém que se considere ou seja considerado inteligente no Brasil que não tenha sido um pouco influenciado pelo Nelson Rodrigues”, opina Olivetto.
O redator Wanderley D’Oro, da LP Comunicação, diz que gostava especialmente de ouvi-lo, quando garoto, comentando jogos de futebol. “Irreverente, mordaz, sarcástico, genial. Um gênio”, atesta. Sergio Gordilho, copresidente da Africa, arrisca dizer que Nelson influenciou todos os homens “católicos apostólicos baianos”. “Através de seu texto ele externou sentimentos, emoções, reações que tínhamos medo de demonstrar. Depois dele, todas as fantasias se tornaram permissivas e inocentes”, define Gordilho.
J. Roberto Whitaker Penteado, presidente da ESPM, confessa que ficava meio chocado, às vezes, com o que Nelson escrevia em sua coluna “A vida como ela é”, no Última Hora. “Às vezes achava que o cara inventava, ou exagerava as coisas ‘pour epater’ (para chocar a burguesia) — como diria minha avó. Mas dava para perceber que ninguém escrevia cru daquele jeito e ao mesmo tempo colorindo as palavras com as cores desavergonhadas de um Van Gogh de subúrbio”, afirma Penteado, que acredita que ninguém escreveu tão epicamente sobre futebol como ele. “Acho que se ele tivesse escrito em inglês ou espanhol, teria ganhado um Prêmio Nobel”, conclui.
Influência
Ronaldo Conde, redator por formação e hoje diretor de novos negócios da Casa da Criação, confessa que decidiu ser jornalista porque queria escrever como Nelson Rodrigues. Leu “O casamento” aos 13 anos. “Uma história devastadora, com um final que me deixou marcado pela força, pela contundência. A visão que ele tinha do casamento me deixou profundamente preocupado com a instituição, na inocência dos meus 13 anos. Mas, que belo texto!”, relembra. Depois, apaixonou-se pelos textos sobre esportes e ressalta que nunca gostou da sua obra transposta para o cinema. “Não por culpa dele e sim por culpa de Jabores, Nevilles e outros menos votados”, aponta.
O tricolor Nelson Rodrigues escreveu frases inesquecíveis sobre flamenguistas. Um exemplo: “Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um dia, por um instante.” Quem é carioca, de qualquer time, sabe que é impossível não concordar com ele, ainda que a contragosto.
Mercado faz homenagens
Entre os eventos que comemoram os 100 anos de nascimento de Nelson está o projeto itinerante “Nelson Rodrigues 100 anos” do Sesi-SP, com teatro, exposições, debates e oficinas, iniciado em maio deste ano. Foram programadas leituras dramáticas de 15 das 17 peças do autor e 13 mesas redondas. Em São Paulo, foram montadas 12 peças do dramaturgo pela cidade e ele foi um dos homenageados da 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, junto com Jorge Amado, na semana passada.
No início do ano, a Funarte (Fundação Nacional das Artes) inaugurou no Rio de Janeiro a exposição “Nelson Brasil Rodrigues – 100 anos do Anjo Pornográfico”. Há ainda, na cidade, várias peças em cartaz, como “Dorotéia”, com a atriz Alinne Moraes, que fica no Teatro Raul Cortez até 14 de outubro. Todas as 17 peças de Nelson estão sendo exibidas em várias cidades brasileiras. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Circuito Sesc Palco Giratório montou Anjo Negro, adaptado pelo grupo Cia. Teatro Mosaico de Cuiabá, em Mato Grosso. Nas prateleiras, há novidades: o relançamento do DVD “A vida como ela é”, série que foi exibida em 40 contos na TV entre 1996 e 1997, no programa “Fantástico”, da Rede Globo, com capa comemorativa e novos extras, uma edição também ancorada no centenário.