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Feeling, inspiração e criatividade estão no DNA do setor de publicidade que, por muitos anos, enxergou a imensa quantidade de dados disponível no mundo digital – o big data – com alguma reticência. Há até bem pouco tempo, não se admitia, por exemplo, que uma campanha mudasse seu rumo por causa de evidências colhidas digitalmente de que os caminhos preferidos pelo consumidor não eram os mesmos imaginados pelos criativos. Mas o tempo e as circunstâncias demonstraram o poder da combinação de criatividade e dados para se estabelecer narrativas poderosas e para gerar resultados de negócios para os clientes.

Cientes disso, as agências estruturaram ao longo dos últimos anos setores que ganharam nomes como business intelligence (BI), data & analytics ou outros derivados. O objetivo era endereçar internamente a questão dos dados, ainda de forma inicial, com foco em geração de insights para a criação ou monitoramento de resultados de campanhas. Mas, agora, essas empresas estão expandindo a área de inteligência de dados e integrando esse “invasor” à própria cultura corporativa da agência, fazendo com que ele dialogue com todos os setores da empresa. Este não é um jogo já ganho, mas algumas campanhas indicam que as agências estão evoluindo rumo à maturidade. A nuvem de dados, invisível para quem assiste a um comercial, tem feito a diferença para que as estratégias consigam se tornar mais personalizadas e conectadas com o sentimento do consumidor.

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Há duas semanas, a Brastemp lançou o filme Homenagem, em que uniu os seus antigos garotos-propaganda Wandi Doratiotto e Arthur Kohl à reprodução de alguns dos principais memes do país – com a participação dos próprios protagonistas, como Glória Pires, e o seu Não sei opinar; Carolina Ferraz, com o Eu sou rica; e Bela Gil, com o Churrasco de melancia. Por trás do divertido filme que divulgava uma nova linha de produtos da marca, havia uma estrutura para ler e interpretar dados de todos os tipos: desde os objetivos de negócios da Brastemp e perfis dos consumidores-alvo da ação à identificação dos memes e personalidades que poderiam ser utilizados sem gerar uma crise, passando pela adequação de cada uma das celebridades com os produtos apresentados e, claro, pela medição de resultados.

“Não existe uma caixinha de big data que você aperta o botão e resolve todos os problemas. Os dados precisam estar conectados às áreas estratégicas da agência, integrando informações sobre os desafios dos clientes, conhecimento sobre o consumidor, a estratégia de comunicação e o conteúdo. Ao encontrarmos o senso comum, o produto criativo é melhor e mais conectado com as pessoas”, afirma Cristina Omura, diretora de mídia da FCB, agência responsável pela campanha. Outra executiva da rede, a vice-presidente de planejamento Marcia Neri, chama a atenção para o fato de que a inteligência de dados contribui para o conteúdo. “Mas, sozinha, ela não significa nada, porque a alma da comunicação vem do compreendimento sobre o comportamento humano”, opina.

Investimento grande

A inteligência de dados é prioridade para as agências e isso pode ser refletido nos investimentos que o setor recebe em algumas agências. A DPZ&T coloca de R$ 5 milhões a R$ 6 milhões em ferramentas de business intelligence por ano, segundo seu CEO, Eduardo Simon. “De cada dez reais investidos pela agência, seis reais vão para a estruturação da área de inteligência, que inclui o BI. Tenho a crença que é uma área central na agência, que impacta em criação, mídia e até em novos produtos para o cliente”.

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Com a implantação da área de inteligência e BI, os dados da agência deixaram de ter um papel meramente de “buscar insights que impactam a criação” para influenciar o processo como um todo. O poder disso para uma agência de publicidade é imensurável, se considerarmos que alguns relacionamentos com clientes são de décadas, um período em que se pode colher informações e conhecimentos profundos que podem impactar no direcionamento futuro do negócio do cliente.

“As agências precisam de uma visão transversal sobre os dados. Eles devem influenciar todo o processo, da criação à estratégia de mídia, passando pela retroalimentação da campanha com os resultados. Temos de mergulhar neles não só para construir as ideias, mas para impactar a estratégia de comunicação e negócios”, recomenda Simon. “Futuramente, será possível adicionar mais inteligência artificial ao processo, o que vai ampliar o nível de sofisticação”, pontua.

Essa visão, diz o executivo, se reflete em cases para clientes importantes. Após analisar dados, a agência ajudou o Itaú a criar a nova linha Investimento 360, de Personnalité, que integra funcionalidades de banco e corretora. Outra ação recente que exemplifica o uso de dados é a ideia de criar um livro infantil digital na esteira do sucesso da campanha Leia para uma Criança, também de Itaú. Para McDonald’s, a agência fez a iniciativa McBot, que transformou os papéis de bandejas em uma plataforma de entretenimento para smartphones, com uso de inteligência artificial dentro do bot do Facebook que possibilitou conhecer melhor os consumidores. “Os dados devem ser aplicados para facilitar o negócio dos clientes. A criação é um pedaço da solução, mas com tantos dados que temos podemos descobrir problemas que nem eram percebidos e oferecer uma solução muito mais ampla“, afirma Simon.

Outras agências têm se movimentado para ampliar sua capacidade de analisar insights. A Talent Marcel lançou, há alguns dias, uma diretoria de interatividade que também vai lidar com a questão dos dados. “É uma mudança de desenho. Já tínhamos uma área de business intelligence para tratar disso, mas ampliamos a ideia para um núcleo de insights. Juntamos a inteligência de dados, que estava no digital, com a área de mídia, para criar algo que estará presente em toda a agência. Nosso foco será desenvolver estratégias de comunicação e negócios, utilizando ferramentas de tecnologia e dados a serviço dos clientes”, explica Marcello Droopy, diretor de criação e interatividade, que divide a liderança do setor com Lúcio Freitas, diretor de estratégia e interatividade.

Para Droopy, as agências já compreendem como dados são inspiradores e essa cultura precisa se expandir para o coração delas. Assim, à entrega de insights criativos poderosos é possível acrescentar ofertas que resultem em negócios para os clientes. “Para continuar sendo parceiros estratégicos dos clientes, precisamos nos atualizar. Quanto mais ferramentas e recursos, e mais contemporâneo nosso raciocínio, mais conectados estaremos para ajudá-los”.

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Na Talent Marcel, por exemplo, os dados são a base de qualquer campanha nova de Ipiranga sob a plataforma Pergunta lá, que existe desde 2011. O social listening é fundamental para a escolha de abordagens e isso impacta em um efeito de se criar memes a partir da própria campanha. “Para Ipiranga, os dados estão em tudo. No desenho da estratégia, nos insights da campanha e quando recebemos dados de volta para retroalimentar a campanha. O desafio da agência é manter o talento criativo para explorar temas que tenham a ver com os dados que venham direto da medição do pulso do consumidor”, analisa Droopy.

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Falta estrutura

A Wunderman já oferece serviços específicos de dados para os seus clientes há algum tempo, mas seu CCO Paulo Sanna afirma que todos os departamentos da agência devem beber dessa fonte. Há cerca de um ano, a rede internacional adotou o modelo de trabalho Collision, uma estrutura de profissionais de criação e insights que pretende quebrar com a forma linear de fazer publicidade. E com coração calcado em dados. “As agências precisam ser capazes de reagir com a velocidade que a nova dinâmica de consumo exige. O Collison tem uma visão de criatividade com inspiração em dados. Ele rege como estatísticos e cientistas de dados interagem com gente do planejamento e criação para o entendimento mais completo sobre o consumidor”, analisa Sanna.

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Na mais recente campanha da plataforma Seu negócio não para, de Cielo, a agência criou mais de 150 conteúdos que conversavam com públicos personalizados. Além de identificar esses targets, que eram profissionais de perfis diversos, a agência cuidou de entender o melhor formato e conteúdo para cada, medindo e retroalimentando a campanha. “Usamos dados em todos os momentos, com insights segmentados que impactaram os resultados de negócios”, analisa Sanna.
O executivo acredita que o mercado já assimilou o desafio de lidar com dados sob o ponto de vista cultural. No lado prático, entretanto, a leitura das plataformas de tecnologia para se tirar o real valor de cada dado ainda vive seu estágio inicial no Brasil, segundo sua avaliação. “Meu sentimento é que tanto agência quanto cliente, em geral, ainda não estão adequadamente estruturados para essa oferta”, analisa.

Há diversas formas de organizar a oferta de dados dentro das agências. Na Mutato, a área de análises fica abaixo do setor de estratégia. Esse time alimenta e discute insights com o planejamento, de onde saem ideias vindas das plataformas de mídia com social listening. Também há conexões do setor com criação, mídia, influência e RP, que trabalham para garantir diferentes aspectos da amplificação e efetividade das mensagens de marca. “Há uma troca entre estratégia e criação, que gera conhecimento sobre os comportamentos do consumidor. E isso cria um ciclo em que os novos insights voltam para planejamento e criação para que proponham outras ações e correções de rota”, explica Andre Passamani, sócio e COO da agência. Ele acredita que a inteligência artificial, que hoje engatinha nas agências, é um próximo passo para causar impacto real na análise de dados. Muita coisa ainda é feita pelo trabalho intelectual de pessoas que transformam as planilhas de ferramentas em insights.

A agência tem cases como o de Netflix, Trai ou não trai?, em que reproduziu o quadro Teste de fidelidade, de João Kléber. A ação surgiu a partir do insight de que brasileiro engaja o cônjuge para assistir a episódios de suas séries favoritas. Para Avon, a empresa ajudou no reposicionamento da marca sempre com olho para as vozes nas redes sociais, tentando gerar conversas com públicos específicos. “O lançamento de BBCream para Avon explorou muito essa mistura de criatividade e dados. A entrega de mídia era consistente com um produto de beleza que necessita de tutoriais para pessoas diferentes e a estratégia era segmentar a comunicação para atingir todo mundo. Pensar em clusters e em perfis de pessoas que interagem com a marca é algo elementar hoje. Acho difícil ser realmente relevante sem partir de estudos amplos para orientar a construção e a manutenção de conversas da empresa nas redes sociais”, analisa.

Nem sempre dá certo

Os mesmos dados que acompanharam as campanhas e atestam seu sucesso também indicam quando a coisa não vai do jeito que se esperava. Na semana passada, a ação que lançou o papel higiênico de cor preta de Personal (Santher) foi considerada racista por milhares de comentários nas redes sociais, por conta do uso da haghtag blackisbeautiful. A frase foi utilizada pelos movimentos que reivindicaram direitos civis aos negros, deflagrados nos anos 1960 nos Estados Unidos. A agência, Neogama, e o cliente retiraram a mensagem criativa, pediram desculpas, mas refutaram as acusações de preconceito. Estrela da campanha, Marina Ruy Barbosa também lamentou. “Tenho certeza de que essa nunca tenha sido a intenção da marca e das pessoas que criaram esta ação, a de seguir por este caminho polêmico ou desrespeitar qualquer tipo de pessoa”, disse a atriz, em sua página de Instagram.