Documentário O Dilema das Redes foi lançado pela Netflix em 9 de setembro e levantou uma série de debates sobre o modelo de negócios das plataformas (Divulgação)

“I had strings but now I’m free” (“Eu tinha cordas, mas agora estou livre”). A frase é dita pelo vilão Ultron no filme Vingadores – Era de Ultron, da Marvel, parafraseando o personagem Pinóquio. Superinteligente e criativo, o robô processa informações e cálculos com velocidade e precisão sobre-humana. Criado com boas intenções por Tony Stark, ele se transforma num grande problema que ameaça a humanidade.

Guardadas as devidas proporções, algo semelhante ocorre nas redes sociais. Criadas com boas intenções, elas tiveram seu lado sombrio cutucado no documentário O Dilema das Redes, lançado pela Netflix em setembro.

A produção norte-americana traz relatos de ex-executivos de companhias como Facebook, Google e Twitter sobre os seus modelos de negócios. O tema, velho conhecido do mercado, voltou à pauta por chamar a atenção do grande público.

Segundo dados da Decode, obtidos de 9 a 29 de setembro, buscas pelo doc no Google cresceram 200% em sete dias. No Twittter, 44% das pessoas afirmaram querer diminuir o tempo na internet. Buscas por “Desativar/Excluir conta no…” chegaram em +250% sobre o Facebook, +110% por “Desativar notificações” e +120% de “Desativar temporariamente”.

Expostas no material, as empresas se defendem dizendo que a segurança dos usuários e do ambiente digital é prioridade, e que o material ignora isso colocando-as como vilões. Em posicionamento, o Facebook fala que o doc limita o tema ao sensacionalismo. “Em vez de oferecer uma visão diferenciada da tecnologia, traz uma visão distorcida de como as plataformas de redes sociais funcionam para criar um bode-expiatório conveniente para problemas que são difíceis e complexos. Os criadores do filme não incluem ideias daqueles que atualmente trabalham nessas empresas ou quaisquer especialistas que tenham uma visão diferente da narrativa do filme. Eles também não reconhecem – criticamente ou não – os esforços já realizados pelas empresas para resolver questões que levantam.”

O Twitter Brasil lembra que a internet continua a ser um reflexo complexo da sociedade e a empresa está aberta a conversas construtivas com governos, acadêmicos e ONGs sobre como deve ser o futuro da conversa pública no ambiente digital. A plataforma afirma que trabalha para melhorar a qualidade e a saúde da conversa pública. “De investimentos estratégicos em sistemas automatizados à construção de políticas e inovações do produto para trazer cada vez mais informações de qualidade ao nosso serviço, temos melhorado significativamente”, diz em nota.

O Google não se posicionou oficialmente sobre as críticas do filme, mas possui iniciativas para combater os malefícios exibidos em tela. No YouTube, por exemplo, há os quatro Rs da responsabilidade: remoção de conteúdo nocivo, redução de conteúdo fora da conformidade, recomendação de vozes confiáveis e recompensação a artistas e criadores qualificados. Já quando o assunto é a busca e uma suposta conivência com fake news, a empresa possui políticas como destacar o conteúdo de fontes oficiais por meio de painéis de conhecimento, como feito durante a pandemia da Covid-19 e em períodos eleitorais.

Mercado: atuação responsável

Glaucia: do consumer centric para human centric (Divulgação)

O documentário também abriu espaço para reflexão sob diversos pontos. Um deles é que o problema estaria em como as pessoas ajudam o algoritmo. Glaucia Montanha, diretora-geral de mídia da Y&R, fala que a reflexão deve ser sobre a conexão e o excesso do uso de dados que o usuário disponibiliza sem pensar. Segundo ela, o tema preocupa, mas não como agência e sim como ser humano. “Podemos ser menos invasivos, limitando frequência, horários e conteúdos, mas não podemos ser ingênuos em falar que vamos abandonar uma linha de receita importante para os anunciantes. Precisamos sair de um olhar de consumer centric para um olhar de human centric: se a mensagem não trouxe engajamento não necessariamente ela não funciona, mas que talvez ela possa estar na hora errada”, cita.

Paulo Ilha, VP de mídia da DPZ&T, vê o filme como um elemento pequeno num contexto amplo que requer entendimento da sociedade. “As pessoas precisam entender esse novo mundo regido por tecnologia e conexões. Essa educação precisa ser feita desde cedo para evitar problemas como fake news, por exemplo. Os players de tecnologia deveriam ter esse papel social mais claro. Essas empresas, algumas das maiores do planeta, hiperconectaram as pessoas, o que é ótimo, mas vieram uma série de problemas cuja resposta passa por elas, que precisam ter responsabilidade.” Para André Chiapetta, gerente de comms planning no núcleo de CCC Effectiveness da Africa, a mensagem a ser absorvida pelo mercado é reconhecer a relevância e as implicações socioculturais das entregas. “Toda ação gera uma reação e isso não é diferente na publicidade, principalmente no digital, onde o conteúdo teoricamente é livre. Precisamos sair do piloto automático e entender que, ao construirmos ou interferirmos em narrativas sociais, nos tornamos responsáveis pelos estímulos gerados e o consequente impacto e lastro social”, diz.

Já Fabrício Macias, founder e head of sales and business development da Macfor, AdTech focada em marketing digital B2B, transformação digital, growth hacking e cultura agile, alerta para o papel decisivo das redes em pontos como a política. Mas lembra que esses mecanismos não foram criados para atrapalhar as pessoas. “Tudo o que foi e é feito nas redes sociais, por parte dos seus criadores, tem um motivo nobre, que é aproximar pessoas. São ferramentas criadas para o bem. Porém, os aprendizados de máquina evoluíram de forma avançada e os criadores estão perdendo o controle da tomada de decisão que essa tecnologia gera. O processamento dessas máquinas está muito à frente da capacidade psicológica do ser humano”, diz. Para desfazer os estragos, a sociedade precisa de conscientização, de legislação atualizada e valorizar produtores de conteúdo profissionais.

Tarcízio Silva: doc tem história limitada e enviesada (Divulgação)

Tarcízio Silva, pesquisador, produtor cultural e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA, explora outra dimensão. Para ele, o documentário apresenta uma história limitada e enviesada de redenção dos empreendedores e profissionais entrevistados, e os temas enquadram o debate de forma diversionista, ignorando décadas de crítica real aos problemas de concentração de recursos e inovação tecnológica. “Há um acrônimo usado na indústria e academia: FAANG – Facebook, Amazon, Apple, Netlix e Google. A sigla relembra o quanto os oligopólios de tecnologias digitais concentram poder, dinheiro e capacidade de moldar a esfera pública, entretenimento, inteligência artificial, consumo e afins. Um documentário financiado pela Netflix apresentar pontos reformistas sobre regulação, ignorar como a supremacia branca e a exploração capitalista agem ao apagar a contribuição de pensadores e ativistas radicais sobre o mercado da tecnologia e neoliberalismo não é por acaso”, critica.

Ele também não acredita que o doc explore bem as consequências sociais e políticas das redes sociais. “A frase de abertura dá o tom. Ao citar Sófocles com a frase ‘Nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição’, o documentário evoca o gênero da Tragédia, que tinha como características a luta de nobres, heróis e deuses contra o destino – que sempre vence. Ao final, Tristan Harris diz algo como ‘parece louco dizer que nós precisamos mudar’ a direção do que está sendo feito na tecnologia. Porém, faz ao menos 30 anos que ativistas, pesquisadores agem para combater ou remediar os impactos da concentração de tecnologia digital usada de forma nociva a favor de bilionários e poderes hegemônicos. Fingir surpresa com os caminhos é uma tática para que os mesmos grupos ofereçam aparente solução – reformista – que não aborde o centro da questão”, aponta.

Adeus ou até logo?

A desintoxicação digital aparece como outra questão essencial, e anunciantes como a Vivo fazem isso comunicando o poder das relações. “É preciso ter coragem para assumir esse problema e apoiar o tema. O consumo excessivo das redes virou cultural. Tratamos de uma forma que estar fora do tema é o ser estranho. É sobre o consumo geral: tudo é proposto para ser multitela, e estar disponível o tempo todo”, reflete Glaucia.

Elen Posse: desintoxicação como um todo (Divulgação)

Para Marcos Lacerda (MaLa), head da HavasPlus, a busca por desintoxicação digital não é uma preocupação. Para ele, apesar de quase todas as marcas estarem presentes no digital, poucas estão no estágio maduro. “Ainda há muito a ser feito. Marcas que se preocupam com uma estratégia de conteúdo permanente e pertinente sempre agregarão valor às pessoas”, conta. Já Elen Posse, head do núcleo CCC Effectiveness da Africa, avalia o ponto como parte da ressignificação sobre a relação com as plataformas digitais, sobretudo no aprofundamento da compreensão sobre elas. “Temos de pensar também em uma desintoxicação da publicidade como um todo. Precisamos reforçar e conduzir projetos que primam por conversas e discussões úteis, relevantes e com propósito”, comenta.

MaLa: controle está nas mãos dos usuários (Divulgação)

Os profissionais também não veem debandada do público, mas busca por qualidade, com todos aprendendo a oferecer e coletar o necessário para customizar a mensagem. MaLa acredita no equilíbrio: “O que foi visto e percebido como solução e inovação não pode ser agora encarado como o vilão. Vale lembrar: o comando/controle continua por meio dos nossos dedos.”