“O preconceito disfarçado (o pior deles) e até – de certa maneira – um racismo subliminar existem, sim, na área da publicidade. Alguém aí consegue lembrar de um publicitário negro que ascendeu os degraus hierárquicos (em qualquer das áreas de qualquer agência média ou grande deste país varonil) e chegou ao topo? Diversidade é falácia”. O desabafo é de um dos raríssimos profissionais negros do mercado, que preferiu não se identificar.

Os motivos são vários, mas o principal parece ser a sensação de solidão em um meio competitivo e inóspito, em que o melhor é não ficar “marcado” ou parecer vitimista. A reportagem tentou encontrar negros – ou afrodescendentes – para dar depoimentos, porém, a constatação é que poucos “chegaram lá” na publicidade. Há um funil que dificulta a entrada e a escalada na profissão. Como não se pode fechar os olhos para sempre, nascem, ainda tímidas e isoladas, algumas iniciativas que reconhecem a questão e buscam mudança.

Uma delas é o Programa 20/20, anunciado recentemente pela J. Walter Thompsom, que tem como diferencial o fato de contar com a assessoria de diversos especialistas no tema, como a consultora de RH Patrícia Santos, fundadora da EmpregueAfro, consultoria em gestão de pessoas, inclusão e diversidade étnico-racial. Ela acaba de ajudar a agência a contratar dez estagiários negros, que tem como objetivo priorizar áreas estruturais da agência como criação, mídia, planejamento e atendimento. Patrícia será chamada sempre que houver vagas abertas na agência, para garantir que haja negros nas seleções. Ela conta que a JWT foi a primeira agência de publicidade a procurá-la com a preocupação da diversidade racial.

A JWT estabeleceu como meta ter, até 2020, pelo menos 20% de seus cargos estratégicos ocupados por negros. Hoje são 8%. “Ficou claro para nós que a agência precisava refletir melhor a diversidade do país no qual está inserida. Isso está sendo feito não apenas pelo altruísmo, como também pela busca de maior competitividade no negócio”, diz Ricardo John, CCO da agência.

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Outra pessoa chamada para prestar consultoria foi o jornalista Rosenildo Ferreira, especialista em sustentabilidade, voluntário da universidade Zumbi dos Palmares e integrante da ONG Afrobras, mantenedora da faculdade. Ele levou pessoas da agência a visitar empresas como Carrefour Brasil e a própria universidade. “O programa da JWT é único porque, ao fixar um percentual ambicioso logo na saída, deixa claro que o processo é pra valer e não apenas para ficar bem na foto com o Relatório Social. Os 20% seriam um número ‘ridículo’ se estivéssemos falando de carreiras como pedagogia, direito, licenciatura em geral e serviço social, cuja presença dos afros é historicamente maior. Mas faz sentido se levarmos em conta a escassez de mão de obra afro no setor de publicidade”, observa.

Ele conta que a diversidade e outras questões ligadas à sustentabilidade começam a entrar no radar das agências porque há empresas – como a General Mills, nos EUA, e o Carrefour, no Brasil – que limitaram a participação de agências em suas concorrências àquelas que exibiam um grau de diversidade na criação e em outras áreas.
É claro que o primeiro funil se encontra nas universidades – a maioria dos negros nem chega a elas, e quando chega, raramente consegue fazer carreira na velocidade dos brancos, o que faz com que muitos desistam e se tornem empreendedores, por exemplo. Atualmente, apenas 13% das pessoas que se formam nas universidades do Brasil são negras.

Dados

Em um estudo de 2015, do Instituto Etnus, sobre a presença dos negros nas 50 maiores agências de publicidade do país, realizado pelo analista de monitoramento e métricas André Brazoli, a consultora de comunicação digital do Ministério da Justiça, Danila Dourado, e a gerente de projetos de mídias sociais, Teresa Rocha, foi levantado que, a cada mil funcionários, apenas 35 eram negros. A pesquisa mostrou ainda que afrodescentes ocupam apenas 0,74% dos cargos de alta direção. Outro dado: negros ocupam apenas 4,7% dos cargos gerenciais, em levantamento feito em 500 das maiores empresas do Brasil (dados do Instituto Ethos).

O responsável principal é o chamado “racismo estrutural” no país, que priva de oportunidades os negros – daí a importância das cotas em universidades, por exemplo. Ou de projetos específicos de inclusão em empresas, cuja maioria é de brancos e ocorre o tal “racismo subliminar”. Patricia trabalha em RH há 17 anos e decidiu criar seu projeto profissional há 12: começou como ONG e há cinco anos virou empresa de consultoria. “Tenho visto nos últimos cinco anos mais empresas falando de inclusão de negros. Na publicidade é preciso falar tanto da inclusão nas campanhas publicitárias quanto na contratação. É um desafio. Acredito que as empresas estão valorizando mais a temática principalmente por questões econômicas: somos a maior parte da população economicamente ativa, ampliando nossa influência”, analisa.

Diversidade dá lucro. A jornalista e palestrante (e ex-consulesa da França no Brasil) Alexandra Loras costuma dizer que ela aumenta, comprovadamente, até 35% a rentabilidade das empresas. Para facilitar a chegada dos negros ao mercado de trabalho, provando a percepção muito comum de que não há negros que falam inglês ou formados em boas universidades, ela criou o site protagonismo.com, que é uma espécie de LinkedIn afro.

Rosenildo afirma que as pesquisas e a “lida diária” mostram que o racismo institucional, maior até do que o das ações cotidianas, é o grande desafio no Brasil. “O recrutador prefere contratar pessoas que se parecem com ele e com o chefe dele, acreditando que assim corre menos risco de perder o emprego. Poderíamos perguntar o seguinte: por que diabos as empresas de publicidade e marketing deveriam contratar negros? Bem, o lugar da fala é vital numa sociedade que cada vez mais rejeita a propaganda convencional e adere ao branded content. Ou seja, para construir uma boa campanha, o lugar da fala se torna essencial. Além disso, a diversidade torna o ambiente mais criativo. A pluralidade liberta e acrescenta repertório. A singularidade emburrece!”, opina.

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A Publicis no Brasil conta com a Publicis Plural, uma plataforma voltada para promover a diversidade e a inclusão e, desde 2016, tem um Comitê de Diversidade, que debate suas políticas internas e avalia onde e de que forma podem crescer. “Na questão racial ainda há muito a evoluir para alcançar um número que seja equivalente à representatividade da população negra no país. Desde a criação do Comitê, tivemos um aumento no número de profissionais diversos no modo geral, e os negros estão dentro. Isso porque estamos investindo na conscientização das lideranças, o que faz com que este olhar se estenda para o momento das contratações. Hoje, temos um portfólio com várias campanhas que quebram estereótipos e valorizam as diferenças. E sabemos que esse é o único caminho para estabelecer um diálogo relevante com o público”, diz Hugo Rodrigues, presidente da Publicis. A grande maioria das agências não possui programas estruturados. Algumas chegam a dizer que não acreditam no estabelecimento de cotas para contratação de negros, como é o caso da Propeg.

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“A Propeg não acredita e, inclusive, não é favorável a um plano ou política para contratação de afrodescendentes e de mulheres. Nossa política de contratação se ancora, única e exclusivamente, pela competência dos profissionais, independentemente de raça ou gênero”, declarou Vitor Barros, vice-presidente de gestão da Propeg. Na Africa, que desde a sua inauguração tem duas belas mulheres negras na recepção, sustentabilidade e diversidade racial não são objeto de programas especiais. “O que levamos em conta no recrutamento são as competências para a função e a aderência com a nossa cultura”, diz a agência por meio de sua assessoria de comunicação.

Algumas agências focam mais na inclusão de negros em campanhas publicitárias, outro ponto nevrálgico do negócio, e na contratação de mulheres, como é o caso da Heads, premiada este ano no Great Place to Work Women, como uma das melhores empresas do Brasil para a mulheres trabalharem. A agência vem se dedicando a realizar periodicamente a pesquisa TODXs, que avalia como gênero e raça são representados na publicidade, comprovando a invisibilidade da diversidade racial brasileira na mídia. “Esse trabalho influenciou como avaliamos candidatos nos nossos processos de seleção e vimos um aumento no número de funcionários afrodescentendes a partir daí”, diz Gabriela Duarte, sócia-diretora do grupo.

Multiplicidade
Sérgio Silva, diretor de planejamento da nova/sb, também não cita programas específicos de recrutamento, mas fala que a agência “aposta na diversidade em todas as áreas – multiétnica, cultural e de formações”. “A agência tem afrodescendentes em todos os seus quatro escritórios (Rio, São Paulo, Brasília e Cuiabá). Pensamos que sem diversidade ampla, as empresas, em especial as que apostam na criatividade, têm muito a perder. A multiplicidade de olhares e saberes é capaz de criar campanhas diferentes, que fogem ao lugar comum”, comenta, mencionando a campanha Sons da conquista, da Caixa, que ganhou Leão de bronze em Cannes este ano.

Paulo Rogério Nunes, cofundador da aceleradora Vale do Dendê e consultor do Berkman Klein Center da Universidade de Harvard, lembra que nos Estados Unidos já existem agências “multiculturais”, criadas por negros, mulheres e “latinos”, que focam na diversidade, e atendem anunciantes do porte do McDonald’s, Coca-Cola e P&G, além do The Community e a Alma, de Miami.

Alê Oliveira

Nos EUA, há uma organização nacional para executivos negros nas 500 maiores empresas do país, o Executive Leadership Council (ELC), focada no desenvolvimento de lideranças negras. Curiosamente, no ranking das 50 empresas com maior diversidade dos EUA, aparecem diversas consultorias – como PricewaterhouseCoopers (em quinto lugar), Deloitte (em 11º), Accenture (em 15º) e KPMG (16º), mas nenhuma agência de publicidade. É uma tendência relevante. “Creio que o grande erro é que muitas vezes as agências pensam que o tema deve ser visto apenas pelo ângulo da responsabilidade social, quando deve ser visto também como uma estratégia de mercado.

Não só porque os consumidores negros têm avançado economicamente, mas também porque a sociedade em geral, e os mais jovens em particular, não toleram mais o racismo e a invisibilidade negra na propaganda e estão ativos nas redes sociais para fazer denúncias contra empresas que não possuem boas práticas em diversidade”, observa.

Fernando Montenegro, pesquisador de consumer insights do Etnus, fala que em um país onde 54,6% da população se autodeclara negra – só perdendo para a Nigéria em população negra – o ambiente majoritariamente branco das agências é mais um aspecto de um imaginário com códigos de consumo eurocêntricos, em que a população negra não se vê nem se sente representada. Na Etnus, uma pesquisa revelou que 77% dos afrodescendentes em São Paulo não se sentem representados esteticamente ou no imaginário dos filmes publicitários. E 61% comprariam mais um produto se sua comunicação conversasse corretamente com ele. “Esse dado é reflexo das pessoas que estão pensando a publicidade brasileira. O repertório desses profissionais, em sua maioria, nunca teve um fit com esse grupo étnico, como constatado em vários de nossos estudos”, conclui.

Não se enxergar na publicidade acaba sendo mais um dos motivos que acabam afastando os jovens negros da carreira de publicidade, entre outros fatores. Marianna Souza, gerente-executiva da FilmBrazil, lamenta a quase total ausência de negros em cargos de destaque em produção. Hoje ela faz parte do grupo FreeTheBid, que nasceu nos EUA e luta pela diversidade entre diretores na propaganda, e reúne por exemplo 46 diretoras mulheres, mas nenhuma negra. “Isso me entristece. Acredito que entre os fatores está o receio, por parte de produtoras, agências e clientes, em apostar no novo e no desconhecido. Certamente, a escolha mais cômoda é investir naquele(a) diretor(a) formado na Faap, que fez cursos no exterior e teve oportunidades ao longo da vida. Em vez de investir em um talento que não teve as mesmas oportunidades, com experiências de vida diferente”, observa.