“O seu comercial de TV não me engana, eu não preciso de status, nem fama”. A frase é de uma das músicas dos Racionais MC’s nos anos 1990. E significa a crítica de uma periferia que não se via representada na propaganda da época. Nos últimos anos, no entanto, o aumento do poder de consumo da classe C e a evolução em sua relação com a mídia colocaram as comunidades definitivamente no radar das marcas e das agências. Um estudo recente da Outdoor Social, empresa que trabalha com publicidade nas comunidades do país, mostrou que as periferias brasileiras movimentam mais de R$ 141 bilhões por ano.
O problema é que muito antes de querer vender produtos e serviços, as marcas precisam estabelecer uma relação muito mais próxima, fluida e assertiva com esse público. O grande desafio é: como produzir campanhas engajadoras se o próprio ambiente das agências ainda conta com poucas pessoas que realmente conhecem intimamente o comportamento e os anseios da periferia? “Quem trabalha com comunicação e marketing tende a viver em bolhas autorreferentes e começa a acreditar que estas bolhas são o retrato do país. Não são. O Brasil é um gigantesco país de classes C/D, e, do ponto de vista comportamental, incluo as periferias dentro desta classificação”, avisa André Lima, VP de criação da NBS.
Agência no morro
Na visão do publicitário, não adianta discursar sobre as periferias e permanecer sentado em salas bonitas e refrigeradas. “É preciso botar o pé na rua, se misturar com as pessoas, entender e viver suas realidades, em vez de ficar criando teorias”, acredita Lima. Em 2012, por exemplo, a NBS lançou a plataforma Rio+Rio, uma espécie de ponte entre iniciativa privada e periferias para a criação de projetos que tragam benefícios para as comunidades e resultado para as marcas. A empreitada, que ainda está de pé, teve durante quase seis anos um escritório fixo na comunidade Santa Marta, no bairro carioca de Botafogo. “O primeiro grande aprendizado foi de como ser relevante para uma marca muito além do universo da comunicação” afirma.
No caso da Rio+Rio, todo projeto criado passa por um crivo de moradores das periferias, um grupo chamado “Amigos do Rio+Rio”. A agência submete tudo que desenvolve aos olhares deles, ouvindo com atenção os seus inputs, modificando e aprimorando o trabalho de comunicação a partir deste diálogo. Segundo o criativo, a NBS olha para a periferia com um profundo respeito, e a consciência de que ela é a expressão mais realista do que é o Brasil. “E uma das coisas mais incríveis do mundo ultraconectado em que vivemos é a capacidade de dar voz a este enorme contingente de pessoas. Estamos vendo, e vamos ver cada vez mais, a periferia influenciando cultura e comportamento, estética e linguagem”, acredita.
Uma das realizações mais emblemáticas da Rio+Rio é o projeto Favelagrafia, que por meio de fotos apresenta as comunidades do Rio de Janeiro sob a perspectiva dos próprios moradores. “É a materialização de algo que vemos diariamente no nosso cotidiano da NBS Rio+Rio: a periferia está repleta de talentos. Com um projeto muito bem estruturado e executado, permitimos que o mundo tivesse o privilégio de conhecer os incríveis trabalhos fotográficos de nove jovens ultratalentosos que moram na periferia”, diz. Com o apoio de algumas marcas, o projeto culminou com uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio e continua vivo, com intensa produção dos artistas.
Periferia in house
Quem também olha com um cuidado muito especial para a periferia é a Wieden + Kennedy São Paulo. É dela o programa Os Kennedys, que oferece a jovens de diversas realidades de São Paulo oportunidades de formação e inclusão no mercado de comunicação, principalmente. São pessoas oriundas dos quatro cantos da cidade e indicados por ONGs e universidades que normalmente não estão no radar de contratação de agências. O projeto está em sua 3ª edição em 2018 e já “formou” 25 jovens entre 18 e 27 anos.
Segundo a agência, 17 desses participantes do programa ainda estão no mercado, oito na Wieden + Kennedy, outros na Africa, VML, F/Nazca Saatchi & Saatchi, Meza, Box1824, DPZ&T e O Boticário. Tão interessante quanto esses números é o nível de engajamento. Dos 165 funcionários da agência, cerca de 80 se envolvem todos os anos na iniciativa, atuando como professores, mentores ou gestores diretos desses jovens. “Nós buscamos incentivar esses jovens a se conhecer e reconhecer neste um ano. E pode ser que, ao final, percebam que a publicidade não é a área que desejam seguir, mas que durante a sua jornada por aqui deixem, de alguma maneira, sua marca e levem um pouco da cultura da agência onde quer que forem”, explica Luciano Oliveira, finance and talent director.
Cada Kennedy tem dois mentores, que os acompanham desde o começo. Junto com essa dupla, existe uma pessoa responsável exclusivamente pelo programa, que atua como facilitador de processos de desenvolvimento pessoal e tem um olhar individualizado para cada jovem. Somado a esse “trio”, ainda existe um processo de sensibilização e formação dos gestores desses jovens depois que ele chega na área que quer atuar. “Todos têm e precisam oferecer algo nessa história: se por um lado a agência está alocando recursos humanos e financeiros para essa formação, os jovens precisam se entregar a essa experiência e buscar qual sentido dessa oportunidade e o que eles têm para oferecer em contrapartida. E essa relação precisa ser colocada na mesa desde o primeiro dia”, pondera Oliveira.
Espaço para o talento
Quem também compreende a relevância de contemplar pessoas com diferentes histórias de vida, incluindo profissionais sem o carimbo das tradicionais universidades que há décadas abastecem o mercado mainstream de agências, é a Mutato. “Uma das premissas, desde o nosso surgimento, é reunir colaboradores com pontos de vista diversos em times que conseguem entregar comunicação de marca que dialogue da melhor forma possível com as pessoas. É da multiplicidade de experiências que saem as melhores ideias, e o olhar periférico é parte integrante dela”, defende Eduardo Zanelato, diretor de cultura & relações com o mercado da Mutato.
Para ele, muito do trabalho da agência passa por questionar verdades absolutas e combater práticas recorrentes. Nesta linha de raciocínio, formação acadêmica não é um determinante para alguém ser contratado pela Mutato. O exemplo vem de casa: um dos dois sócios-fundadores não estudou em São Paulo e, outro, dos cinco integrantes do board, não tem diploma de curso superior. A empresa afirma preferir a atitude, experiência pregressa (em projetos profissionais ou não), a história pessoal e alguns traços comportamentais que consegue mapear nos processos seletivos.
Segundo Zanelato, o mercado ainda continua muito homogêneo e avesso ao diferente. O resultado? A criação de ambientes que rapidamente expelem quem não atenda a certos padrões. “Mas, no contexto de troca em rede que vivemos, esse modelo rapidamente ficou ultrapassado. Hoje, o frescor criativo advém de pontos de vista distintos trabalhando juntos. Podemos, sim, ter o recém-formado em uma boa universidade de comunicação, mas dependemos, também, de ter jovens que, por exemplo, estão mapeando os melhores restaurantes da periferia de São Paulo e criando conteúdo sobre isso – caso de ex-alunas da escola de jornalismo Énóis, que trabalham hoje na Mutato”, diz.
Rever o conceito de meritocracia normalmente aplicado na busca por profissionais é outro ponto crucial, pelo menos no entendimento de Luciano Oliveira, da W+K. “Temos uma série de privilégios que são reconhecidos como padrão por quem contrata, que fazem com que o quadro de funcionários seja majoritariamente branco, masculino, de classes sociais mais altas e oriundos das mesmas escolas universitárias”, avisa. Ainda segundo o profissional, uma vez reconhecido isso, é necessário criar programas de formação e inclusão dessas pessoas menos privilegiadas e garantir um acolhimento verdadeiro delas dentro do ambiente. “Não é simplesmente colocar ela na equipe e mandar ‘se virar’. É preciso pensar em como diminuir as lacunas de aprendizado desses novos funcionários, ao mesmo tempo legitimar o conhecimento de vida que ele adquiriu ao longo da sua caminhada”, defende.
Publicitário da quebrada
Com um raro caminho contrário, a agência NewVegas já nasceu com uma visão muito particularmente enraizada com os valores que permeiam as comunidades. O motivo é óbvio: Ian Black, um dos sócios-fundadores da agência, cresceu no bairro de Pirajussara, periferia da Zona Sul de São Paulo. Além disso, sua formação como homem de comunicação não foi forjada pelo clássico ambiente acadêmico. Passou pela RIOT, LIveAD e Wunderman até criar a própria empresa, em 2011. “A minha trajetória me possibilitou uma forma de ver e viver o mundo que é bem distinta da maioria dos meus colegas. Eu tive de adaptar muitas coisas, e eu soube transformar em vantagem competitiva a minha ingenuidade e minha raiva ao ir percebendo que os espaços da publicidade (em todas as suas manifestações: agências, anunciantes, trabalhos, profissionais, eventos sociais) não foram criados para a minha realidade”, conta.
A mentalidade e a vivência de Black e seu sócio Vinícius Facco, também oriundo da periferia (mas do Sul do país), inevitavelmente é empregada no modelo da New Vegas. “E o resultado disso, na prática, é uma agência em que não se vira noite, em que raramente se passa do horário padrão ou se trabalha nos fins de semana. E a quantidade de mulheres é de 75% (numa agência de 60 funcionários). A agência está longe de ser perfeita, ainda faltam muitos processos (ela nasceu com 4 pessoas em 2011 e foi crescendo de acordo com as necessidades dos clientes). Meu sonho, que ainda vai virar realidade, é chegar a 50% de pessoas pretas”, confidencia.
Para o publicitário, a propaganda tem essa questão delicada e pouco discutida de apropriação e esvaziamento de causas, adequando-as para a lógica de consumo sem contrapartidas satisfatórias para quem trabalha duro e morre diariamente por elas. “A publicidade quer celebrar a diversidade de raça, gênero e sexualidade nas suas peças, mas insiste em não discutir formas de qualificação e inclusão eficazes em seus espaços. Grandes empresas se mostram engajadas, mas basta uma visita aos espaços de decisão e ver que os perfis não mudaram muito nos últimos anos”, adverte.
No raciocínio de Black, as parcerias com os coletivos são alternativas interessantes, mas com ressalvas, para estreitar a relação entre as agências e comunidades. “Para quem está nesses coletivos, é uma baita chance de se conectar com profissionais da elite publicitária e ter a oportunidade de desenvolver trabalhos autorais. Mas há também um lado perverso nessa relação: apropriação e esvaziamento das mensagens vindas desses grupos minorizados quando aplicados a uma lógica de consumo. Além disso, esses coletivos são chamados para trabalhos extraordinários focados em suas pautas, e não para um trabalho de longa duração”, explica.
Linguagem e estética
Se por um lado as iniciativas devem começar no cerne das agências, incluindo equipes mais diversas, não se pode perder de vista que, no final das contas, o intuito maior é a produção de comunicação dentro de uma representação mais alinhada com a realidade da população brasileira. Para Zanelato, já há uma pequena evolução da propaganda neste sentido, mas ainda há um longo caminho de desconstrução pela frente. “Acredito que qualquer iniciativa que parta de um grupo de pessoas com diversidade de formação, origem, pontos de vista e vivências tende a acertar (ou errar o menos possível) na hora de se comunicar, qualquer que seja o público-alvo prioritário”, avalia.
Já na concepção de André Lima, da NBS, o primeiro e mais importante ponto é não subestimar a inteligência do morador da periferia. “Eles sabem o que querem e, muitas vezes, eles querem o mesmo que você ou seus amigos de classe econômica mais alta. Por isso, não tenha esta atitude condescendente. Aproveite para treinar a sua escuta. Ouça com verdadeiro interesse e atenção. Compreenda que a marca para a qual você trabalha tem muito mais obrigações com o mundo do que apenas garantir lucro. Aliás, o mundo onde o retorno financeiro aos acionistas é o único indicador de sucesso está com dias contados”, analisa.