Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra. Eis aí algo que o entrevistado especial da edição de aniversário não é: unânime. Há quem
ame, há quem odeie, mas uma coisa é certa: Luiz Felipe Pondé se tornou uma das referências brasileiras quando o assunto é filosofia.
Doutor da disciplina pela USP e Paris VIII, possui pós-doutorado pelas Universidades de Tel Aviv (Israel) e Giessen (Alemanha). Abaixo, Pondé discorre sobre marketing, publicidade, vida e todos os pormenores entre eles.

Há um termo nesse meio publicitário que vem ganhando muito espaço, mas nem todo mundo gosta, que é o “novo normal”. O que você acha dessa expressão?

Eu não gosto da expressão. Acho ela muito inconsistente. Apesar de que eu entendo a ideia de que existam algumas coisas que podem mudar no cotidiano e já mudaram. Mas eu não sei quanto tempo elas vão durar. Não deve ser muito tempo. Por exemplo, faz parte do novo normal a decisão da Comunidade Europeia de que brasileiro não entra lá até acabar a pandemia? Isso é uma situação que a gente está passando, mas que, na verdade, é o velho normal. A expressão “velho normal” é mais verdadeira do que o “novo normal”. “Novo normal” é um truque de marketing para empacotar para presente o que está acontecendo. Estou pegando este exemplo da União Europeia. Isso é uma prática muito comum na história. As medidas sanitárias são sempre medidas violentas. É claro que guardando as diferenças, mas basicamente o que o mundo sempre fez foi cercar, como a China fez com Wuhan no começo, você cerca o polo da pandemia e deixa as pessoas lá dentro. Faziam isso na peste, fizeram isso na Gripe Espanhola, em Buenos Aires nas favelas, em Bogotá e agora a Comunidade Europeia fez com o Brasil. Não há nada de novo normal nisso. A humanidade já teve várias epidemias na história, muito piores que essa. Não com a propaganda, marketing e o jornalismo que essa tem, mas muito piores. É claro, se há algo de novo, temos mais trabalho home office, que no Brasil tinha menos e em outros países tinha mais. Mas isso pode mudar o cotidiano de algumas empresas. Isso é algo que foi assimilado. Eu diria que, principalmente, qualquer coisa de mais ou menos novo está mais associado a um uso maior de tecnologias remotas para alguns eventos, processos de produção de conteúdo e trabalho. Mas novo normal é, por enquanto, não poder beijar na boca com muita facilidade. Acho a expressão muito vazia. Estamos vivendo o velho normal. O mundo sempre foi violento com pandemias. Agora está até um pouco menos.

Há uma reabertura de shoppings em muitas partes do Brasil. Há filas de pessoas nas entradas. Você acha que as pessoas utilizam as compras como um escape para a ansiedade? E qual a responsabilidade das marcas nisso?

A principal responsabilidade das marcas é ficarem financeiramente saudáveis para pagar salário para quem trabalha com elas. Essa é a primeira responsabilidade das marcas. Ser responsável pela manutenção da cadeia produtiva que gera riquezas. Em segundo lugar, acho que as marcas têm uma responsabilidade do ponto de vista de agregar valor para ela, de serem cuidadosas nessa realização da cadeia produtiva. Agora, criar condições de trabalho para os funcionários, para as lojas, de repente aumentar o número de funcionários para que eles trabalhem menos tempo e fiquem menos tempo dentro do ambiente viciado, observar máscaras, distanciamento marcado no solo, número de clientes… Vai ser cansativo, mas não tem muito como não ser assim nesse momento de retorno. Acho que as marcas também são responsáveis por investir muito em histórias falsas. Falar de um Brasil que é mais alocado nos Jardins – usando como metáfora. Não criar narrativas extremamente descoladas da realidade com famílias lindas Doriana na quarentena feliz, quando todo mundo sabe que tem muita gente morrendo de medo, casal se separando… Não precisa fazer propaganda da desgraça, mas as marcas devem pegar um pouco mais leve na mentira. A vida está muito estressante e muita mentira faz com que as pessoas se sintam muito bobas.

Com os recentes protestos envolvendo a questão racial, muitas marcas decidiram entrar nessa conversa. Você acredita em marcas que queiram salvar o mundo e combater o racismo?

As marcas podem, sim, fazer conteúdos que sejam inclusivos com relação a populações que são objetos de exclusão. Faz parte, as marcas são produtoras de imaginários, não é? Agora, a ideia de as marcas salvarem o mundo é uma farsa. As marcas querem sobreviver, ganhar dinheiro, ter lucro e elas podem brincar com essas coisas na Dinamarca, mas na América Latina e na África aí complica um pouco.

Mas elas têm uma responsabilidade, certo? Elas tiram muito do público e precisam dar algo em troca, certo?

Sim, como toda elite deve dar algo em troca. Porque se você não cuidar dos pobres eles vão cuidar de você. Isso é desde o século 19, entendeu? Muita desigualdade social pode gerar desorganização social ao longo do tempo. Então, eu acho que, como toda elite – e as marcas são parte da elite -, elas têm responsabilidade pela sociedade. O que eu quis dizer é que elas conseguem exercer essa responsabilidade na medida que mantêm a saúde financeira. O modo como elas agem num país da Escandinávia não é a mesma linguagem ou olhar que elas precisam ter na América Latina.

Você já disse que o “jovem é um poço de moralismo”. Essa lógica se aplica à publicidade? Até porque ela é feita por jovens, em sua maioria. A publicidade é moralista?

Atualmente, sem dúvida. Tem uma piada quando entrei na Folha que eu escutava, há uns 12 ou 13 anos, que os jornalistas faziam consigo mesmos que era o seguinte: “jornalistas e publicitários vão para o inferno, mas o jornalista não sabe”. Agora, o publicitário também não sabe. Ele quer ir para o céu. Ele quer ensinar as pessoas a serem legais e, se o publicitário sempre correu o risco de esquecer o produto do cliente, agora ele corre cada vez mais. Penso isso porque dou aula no curso de comunicação social há 25 anos e uma das habilitações é publicidade e propaganda. Vejo isso a olhos vistos na sala de aula. Os jovens chegam à faculdade cada vez mais moralistas, já vêm da escola, da família, as redes sociais têm uma vocação fascista, de ser agressiva e de linchar posições, como todo mundo sabe. Então, os jovens estão solitários porque normalmente têm poucos irmãos ou nenhum. Os pais projetam sobre eles muitas expectativas. Eles têm de saber mandarim, precisam ter comida vegana, não podem sentir
ciúmes… Os jovens são depositários de toda a expectativa de santidade falsa. E eles são moralistas, sim. E puritanos. E não é só a minha opinião. Eu vejo isso dando aula há 25 anos. Vejo essa diferença com as meninas que trabalham comigo e são formadas há cerca de cinco ou seis anos para meninas e meninos que agora estão com 18 anos na faculdade. Claramente é diferente. Linguagem, extremamente politicamente correto, obcecado por uma séria de pautas absolutamente restritivas da possibilidade de você entender o mundo, sabe?

Talvez um descolamento da realidade dos alunos?

Sim, mas um descolamento da realidade que exige deles que sejam santos. E aí, quando vai para a publicidade, ela fica cada vez mais boba, neste sentido.

Você disse que publicitários decidiram que merecem o céu. Você acha que estão fazendo por merecer?

Escrevi o Guia Politicamente Incorreto da Filosofia em 2011. Agora, no fim do ano passado, saiu uma edição nova com outro título, pois mudou de editora. Tive de reler o livro, fazer ajustes, fiz uma nova introdução, mas, de todos os textos, o único que tive de mexer foi no de publicidade.

O que mudou?

Durante muitos anos – e ainda hoje – tenho a oportunidade de participar de reuniões de publicidade via agências para discutir comportamento, nos últimos tempos pude gravar vídeos discutindo pautas para que eles usem nas reuniões, então eu tenho um percurso que aprendi muito que é discutir comportamento com a intenção de criar publicidade para determinados públicos. Aprendi muito com isso, em planejamento estratégico, especificamente. Percebo, talvez há uns três, quatro anos, uma piora muito grande na discussão por conta justamente dessa característica de querer ir para o céu. Então, inclusive, no capítulo sobre publicidade eu dizia que um dos ambientes que eu encontrava pessoas mais inteligentes para discutir sociedade era em reuniões de agências de publicidade. Não é mais. Eu achava que era acima do nível porque os publicitários tinham uma intenção muito técnica de saber o que as pessoas querem para poder acessar. Ou eles tinham uma intenção muito clara de preparar o desejo para daqui dois anos, tecnicamente falando. Hoje não. A publicidade quer pregar causas e neste universo ela se tornou banal como qualquer pregação em qualquer igrejinha.

O setor precisa ouvir mais o consumidor? Estudar mais sua realidade?

Precisa sair do delírio do politicamente incorreto e querer entender o que de fato se passa no mundo. Pelo seguinte, o publicitário tem um problema: se ele não vender, ele perde a conta. A ideia do marketing de causa também agrega valor às marcas. Quando eu falei que elas pensam que
o mundo todo é a Dinamarca, elas precisam tomar cuidado. Uma prova que elas têm de tomar cuidado: veja que o Brasil elegeu o Bolsonaro.

Você já falou dos ricos contra o capitalismo. Há uma parcela de publicitários que costuma falar mal do capitalismo. Isso é contraditório? Você percebe isso entre seus alunos?

Quando você está falando com jovens de classe média para cima, isso é marketing. Xingar o capitalismo é um assunto que garante lugar em muitos jantares inteligentes. Publicitário é o tipo mais comum nos jantares inteligentes. Agora, é claro que, principalmente para grandes publicitários, que ganham muito dinheiro com ele, xingar o capitalismo é cuspir no prato que comeu.

Se pudesse dar um conselho aos profissionais de propaganda e marketing neste mundo pandêmico, qual seria?

Aconselharia a ler um livro que acabou de sair no Brasil chamado A Violência e a História da Desigualdade: da Idade da Pedra ao Século XXI. É de um autor austríaco radicado nos Estados Unidos chamado Walter Scheidel. Com esse conselho quero dizer o seguinte: os publicitários precisam olhar para a realidade mais do que para a imaginação deles de como o mundo devia ser. Caso não façam, é mais ou menos como se um piloto de avião quisesse pilotar sem levar em conta a verdadeira previsão da meteorologia.