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O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) move uma ação contra o Google para que sejam retirados do YouTube vídeos de influenciadores mirins na categoria unboxing. O órgão alega que, por meio desse tipo de conteúdo, o público infantil se torna “receptor de publicidade disfarçada de programação de entretenimento”, configurando assim prática abusiva. 

O promotor do inquérito, Eduardo Dias, pede ainda que sejam adotadas medidas para impedir a monetização de vídeos com propaganda infantil. A ação é resultado de três diferentes denúncias realizadas pelo Instituto Alana. Na primeira delas, feita em 2015, a ONG afirma que o McDonald’s enviou brinquedos do McLanche Feliz antes do lançamento oficial da campanha a um youtuber mirim. A segunda citou 15 marcas de diferentes segmentos, como brinquedos, roupas e material escolar, também por envio de produtos a crianças. Já a última, de 2017, denunciava a Mattel por ação de divulgação de produtos “Monster High” no canal da youtuber Julia Silva, atualmente com 14 anos.

“Não somos contra a relação da criança com as mídias e com a internet. A gente se preocupa com a superexposição delas e o direcionamento da publicidade de forma velada. Não tem como dizer que esse tipo de prática não influencia, o efeito do unboxing é muito poderoso”, afirma Ekaterine Karageorgiadis, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Procurado pela reportagem, o Google afirma que “não comenta casos específicos”. A Mattel ressalta que “a campanha de Monster High realizada na plataforma YouTube, em 2016, foi feita de acordo com as leis brasileiras”. A fabricante esclarece ainda que “a despeito da regularidade do conteúdo, o mesmo deixou de ser veiculado pela Mattel, desde outubro de 2017”.

Já o McDonald’s fala que não trabalha com youtubers mirins. “Nossa comunicação com os consumidores é feita com responsabilidade e segue rigorosos critérios internos e práticas do setor. Por exemplo, em 2016 reafirmamos um compromisso público iniciado em 2009 junto a entidades e empresas do nosso ramo para uma publicidade responsável de alimentos e bebidas para crianças e definimos, entre outras restrições, que não anunciamos em programas, veículos e/ou canais que tenham 50% ou mais de sua audiência composta por crianças menores de 12 anos. Além disso, há 10 anos adotamos voluntariamente um compromisso e código de ética próprios em comunicação publicitária de alimentos”, comenta a rede de fast food.

O fenômeno do unboxing
A categoria de vídeos unboxing começou fazer sucesso nos Estados Unidos em 2006, oferecendo ao público resenhas técnicas de produtos – principalmente eletrônicos.

Em meados dos anos 2010, os vídeos ganharam força no nicho infantil. Um dos maiores nomes da modalidade no mundo é Ryan, do canal Ryan ToysReview, que teve seu primeiro vídeo publicado em 2015. Segundo a Forbes, no último ano o garoto de oito anos se tornou a estrela mais bem paga do YouTube, arrecadando US$ 22 milhões (cerca de R$ 84 milhões) durante o período.

Além da influenciadora Julia Silva, ação do MP-SP cita ainda outros seis youtubers mirins: Felipe Calixto, Vida de Amy, Canal Duda MH, Manoela Antelo, Gabriela Saraivah e Marina Bombonato. O menor dos canais tem, atualmente, 523 mil inscritos; o maior, 4,6 milhões. De acordo com os próprios Termos de Serviço, “o website do YouTube não é projetado para jovens menores de 18 anos”.

A diretriz é outro ponto questionado por Dias no inquérito contra o Google. “O que se percebe, de fato, é que não apenas a plataforma é utilizada por crianças e adolescentes, como virou palco de violação de direitos, como no caso em apreço em que crianças e adolescentes são expostas a comunicações mercadológicas abusivas através dos youtubers mirins”, sugere o promotor.

“O fenômeno unboxing é muito amplo e começa com uma finalidade bastante legítima. Já no universo infantil, ele se vale da vulnerabilidade da criança e a transforma em um promotor de vendas. Enxergamos com preocupação o fato disso fazer parte da formação dessas crianças desde tão cedo. Nesse contexto, muitas vezes as crianças nem falam, mas já apresentam necessidades de consumo por conta desse tipo de influência”, acrescenta Ekaterine. “Se a plataforma tem como retirar do ar vídeos por violação de direitos autorais, como músicas e vídeos, por que ela não derruba conteúdos que violam os direitos das crianças?”, questiona.

Histórico
Em 2016, o Ministério Público Federal de Minas Gerais (MPF-MG) pediu ao Google para que em todo o site fosse inserido um aviso de que publicidade infantil é proibida e abusiva. O grupo de tecnologia ganhou o processo.

No ano seguinte, os irmãos Felipe e Luccas Neto foram advertidos pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) por conta da ação Desafio Felipe Neto vs. Luccas Neto (Na Netoland), que consistia em um sorteio no qual os vencedores passariam um dia na casa dos youtubers. As inscrições eram feitas por meio de ligações telefônicas.

O órgão afirmou que o vídeo não deixava claro que a promoção se tratava de um anúncio publicitário e que as regras para participação não foram expostas de forma clara. Mesmo retirando o vídeo do ar, os influenciadores recorreram da decisão, que foi julgada em 2018 pelo Conselho de Ética. Em decisão unânime, Felipe e Luccas foram punidos e o conteúdo permanece suspenso. Grande parte do público dos canais é formada por crianças e adolescentes.

O que diz a lei?
A resolução de 2014 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) considera abusiva a prática de publicidade de comunicação mercadológica à criança utilizando-se, dentre outros, de linguagem infantil, representação de criança, pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil, personagens ou apresentadores infantis, desenho animado, bonecos ou similares e promoções com distribuição de prêmios ou brindes ou com competições ou jogos com apelo infantil.

Segundo o Conar, os anúncios não podem “empregar crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo, sendo admitida, entretanto, a participação deles nas demonstrações pertinentes de serviço ou produto”. O conselho considera também irregular as campanhas infantis com verbos no imperativo ou publicidade velada.

Evolução do mercado
Para Carlos Tristan, CMO e cofundador da Squid, uma plataforma especializada em marketing de influência com microinfluenciadores, ocorrências como essa podem ser positivas para que o mercado aprenda e crie para si novas regras. “Essa discussão é válida porque o relacionamento com influenciadores digitais, apesar de já ser prática do dia a dia, é ainda muito novo. Não existe uma receita de bolo, é necessário testar os formatos que funcionam”, afirma.

O especialista acredita na relevância de investimentos mais assertivos para outros formatos publicitários além do unboxing, em que as marcas obtêm maior segurança em relação às entregas e resultados. “Às vezes o investimento é maior, mas com retorno muito mais robusto. O ideal para um relacionamento entre uma marca e um influenciador, seja o pagamento realizado em dinheiro ou produtos, é trabalhar com contratos, contrapartidas e monitoramento. É um processo melhor construído”, explica.

Ainda de acordo com o CMO, a reputação de suas marcas é um dos principais motivos para se planejar melhor as ações digitais. “Quando os influenciadores falam de produtos, eles se tornam porta-vozes de determinada marca. É muito fácil que isso fuja do controle e repercuta negativamente quando não há uma preocupação com o histórico de quem está falando por você”. Tristan reforça ainda a importância de direcionar as ações, mesmo que infantis, não às crianças, mas sim a seus responsáveis. “No fim das contas, são os adultos que têm o poder de compra e tomam decisões”, aponta.

A orientação vai de encontro ao que propõe também o Instituto Alana. “As crianças não compreendem a diferença de conteúdo e publicidade. Então, por que não falar com o adulto? Com esse público é possível abordar os diferenciais dos produtos sem apelar ao imaginário infantil para vender”, encerra Ekaterine.