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Vou logo avisando: nasci nos anos 1960. Aquela década “meia-boca” da revolução sexual, golpe militar, Gerra do Vietnã, Paris 68; essas coisas.

Você pode até dizer: “Mas você era uma criança. Não tinha noção de nada”. Tinha sim. Não entendia, mas tinha. E, aqui pra nós, dá a maior moral dizer: “Eu nasci nos anos 1960. A década da etc. etc. etc.” E vi o homem dos mil gols com a amarelinha.

Nascendo nos anos 1960, pude viver outras décadas com movimentos bastante inspiradores. E nem estou falando do existencialismo.

Os anos 1970, por exemplo. Se eu fosse roteirista, poderia ter me inspirado nesses anos e ter escrito a série Vinyl. Não escrevi, mas poderia. Pelo menos dancei nos embalos de domingo à noite (os “bailes” eram aos domingos numa superdiscoteca no subúrbio do Rio).

Por isso, falar de inspiração comigo é um negócio que me incomoda. Não tem a “ditadura da magreza”? Agora tem a “ditadura do link”. Se não tem link, não é atual, nem olham. Se você falar que viu o Nacional Kid na TV nem vão te perguntar o que é isso: “Me passa o link?”. Não aconteceu na última meia hora, não está no foco. Vão olhar para você como se fosse um Inca Venusiano (se você não viu a série, não sabe o que é: significa um ser de outro planeta). Por outro lado, também não vão saber que esse personagem pop foi criado para vender a indústria japonesa de eletrônicos National. O primeiro conteúdo mundial para uma marca.

Outra: o personagem Tintim virou “setentão”. Está com uma megaexposição no Grand Palais em Paris. Que moral, hein? Li esse cara desde criança. Asterix e Charlie Brown, entre outros. Lembro-me que o slogan do Tintim era Dos 8 aos 80. Eu ainda não cheguei lá, mas o sobrinho de 8 anos da minha mulher ama o Tintim. Por quê? Porque o Spielberg o trouxe para os dias de hoje. Mas o Tintim já era bom na origem. Ele me inspirou a conhecer o mundo com suas aventuras. Claro que eu não tinha noção de quanto custava uma passagem de avião. Meu mundo caiu. A vida na HQ é mais fácil.

Alguém vai dizer que eu estou defendendo o passado. Tô não. Estou defendendo que inspiração não tem data nem hora nem local.

Quando vejo JJ Abhams trazer de volta Star Wars ao padrão de história que o tornou um ícone pop além dos anos 1980, dá para pensar: como sou privilegiado de poder me inspirar no bom do século passado e no de agora.

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Se a foto é do Sebastião Salgado ou de um iPhone megapower 6S plus; se é Bond ou Bourne; se o teatro é Brecht ou Buraco da Lacraia; se é rede social ou uma rede em Itapuã (só mesmo porque Vinicius versou: a praia é ruim), se o papo é com alguém que viveu muito antes de ontem ou com alguém que já está vivendo muito depois de amanhã; não importa. Minha inspiração vem de uma imensa panela onde eu jogo tudo, misturo e tiro coisas que ora são para o CNPJ ora para o CPF. Tudo me interessa, mas nem tudo me apaixona. Mas tento achar inspiração nessa mistureba. Verdade que nem tudo dá para engolir.

Papo no bar ou com o analista (junguiano, claro); Elis ou Amy; Motown ou Madureira Soul; um ótimo livro ou um grande filme; um dedão ralado no futebol de rua ou um passeio pelas travessas de Paraty ou Praga; tudo será sempre inspiração.

Fiz duas cenografias para o saudoso amigo e diretor Antonio Abujamra. Como redator, até que me saí bem como cenógrafo. Tudo que li, ouvi e vi me empurrou para esse território desconhecido. E me inspirou a tentar imprimir algo meu. Inspiração é risco.

Não quer dizer que quem leu grandes livros vai virar escritor.

Ou porque viu grandes filmes vai virar diretor.

Nem vai virar artista plástico porque viu belos quadros (não cabe “grande” porque a Mona Lisa é pequena).

Mas que existe uma grande chance de você ser uma pessoa inspiradora para outras porque viu tantas coisas boas, existe sim. Eu conheci algumas.

Inspiração está por aí. Não olho para trás. Olho o que é bom e original. Seja em que tempo for. Seja em que lugar esteja. Contaremos sempre histórias. O “onde” e o “como” é que mudou.

Para ilustrar isso, vale voltar ao Tintim e a Steven Spielberg. A caminho de Cannes, o diretor deu uma paradinha em Paris. Seu assistente trouxe dois livros do Tintim de uma livraria. Ao descobrir as aventuras do jornalista detetive, comentou surpreso: “Já haviam inventado o Indiana Jones e eu não sabia!”

Quem leu Príncipe Valente sabe que Game of Thrones já estava lá. Fica a dica, Steven.

Marcos Apóstolo é sócio e diretor de criação da Binder e filho da dona Ivany e do seu Herman.