O antropólogo Bronislaw Kasper Malinowski se embrenhou nas ilhas do Pacífico para estudar o comportamento das tribos aborígenes no século 19. Mais do que apenas ver, o polonês decidiu vivenciar rituais, crenças, vestimentas, linguagens e trejeitos identitários, que se transformaram em dados capazes de delimitar a cultura e as práticas sociais daquelas comunidades.
A experiência de campo inaugurou a etnografia, que evoluiu para o ambiente urbano com estudos de Howard Becker e William Whyte nos anos 1950. Duas décadas depois, essa metodologia qualitativa encontrou nas esquinas de Copacabana, no Rio de Janeiro, as bases para a antropologia brasileira no trabalho guiado pelo professor Gilberto Velho.
“O marketing resistiu durante muito tempo ao uso da etnografia, técnica considerada longa, cara e que demanda mão de obra qualificada. Preferia as pesquisas de mercado quantitativas”, lembra o professor José Mauro Nunes, da FGV Ebape.
Mas com a abertura econômica do Brasil a partir da década de 1990, estilos de vida urbanos se pulverizaram, levando as empresas, especialmente do setor de bens de consumo, a investirem na etnografia para entender os meandros da recuperação.
Piso frio, panelas de teflon, máquina de lavar. Surgia uma nova classe média. Foi nessa fase que muitos brasileiros introduziram itens que nunca haviam entrado em suas cestas básicas.
Dos governos de Fernando Henrique Cardoso a Lula, o fenômeno pode ser visto no documentário A família Braz, de Dorrit Harazim e Arthur Fontes, que acompanhou as transformações de moradores da Vila Brasilândia, em São Paulo, entre os anos de 2001 e 2011.
Depois da abertura econômica veio a revolução digital. Acentuado pelas redes sociais, o movimento fez com que o método etnográfico fosse adaptado para o ambiente digital, impondo novas empreitadas exploratórias, só que no mar de dados da internet.
Nos Estados Unidos, a comunidade de fãs da saga Star Wars foi uma das primeiras a serem estudadas pelo professor canadense Robert Kozinets, considerado o pai da netnografia, que tem o especialista em comportamento do consumidor Daron Muller como expoente na Inglaterra.
A netnografia ou etnografia digital deixa claro que os seres humanos atribuem significados a produtos e serviços às suas vidas. “Estudar netnografia e etnografia significa entender que a cultura envelopa as decisões de compra dos consumidores”, esclarece Nunes.
No campo
Hoje, empresas como a Reckitt Health & Nutrition Comercial vão a fundo na estratégia. A empresa iniciou neste ano um trabalho de segmentação por meio de tribos para algumas marcas. As pastilhas para dor de garganta Strepsils, por exemplo, terão mensagens customizadas a partir das necessidades destes grupos. Para 2022, o objetivo é atingir a totalidade das marcas com as campanhas de digital parametrizadas por esse modelo.
O mapeamento de insights e oportunidades em projetos de inovação inclui o canal Consumer Care (Serviço de Atendimento ao Consumidor); pesquisas de painéis de consumidores; monitoramento da concorrência; estudos qualitativos, como grupos, entrevistas, tríades e workshops com consumidores; e quantitativos, sejam eles ad-hocs, como teste de conceito, embalagem ou filmes.
“Também realizamos pesquisas mais sindicalizadas, como painéis de varejo, lares e consumidores”, diz Bruno Widmer, gerente sênior de categoria da Reckitt Health & Nutrition Comercial, que ainda tem um time dedicado para community management e social listening, que monitora marcas e categorias nas redes sociais.
Os relatórios apoiam as decisões dos times de marketing, inovação e desenvolvimento. A atuação na área de medicamentos e nutrição ainda exige a montagem de painéis com médicos, nutricionistas e profissionais da saúde.
Dona das marcas Olla e Jontex, a empresa estuda o bem-estar sexual, e percebeu a importância de desmistificar alguns tabus.
O lubrificante íntimo Jontex Naturals propôs o empoderamento das mulheres e, em 2020, lançou a campanha Delete o Normal, que convidava a repensar atitudes nocivas. Com o antigases Luftal, veio uma abordagem educativa sobre o funcionamento do produto.
Na P&G, o trabalho etnográfico online busca reduzir o viés dos métodos tradicionais, trazendo histórias que se conectam com percepções inconscientes dos brasileiros por meio de entrevistas e atividades feitas conforme cada pergunta de negócio.
“A antropologia tem sido a nossa base para conhecer mais os brasileiros. Por meio da internet, conseguimos estudar as diferentes culturas e aprender através do exercício da alteridade, desconstruindo diariamente mitos etnocêntricos”, explica Marcos Bauer, diretor sênior de analytics, insights e desenvolvimento de categorias da P&G Brasil.
Na prática
Nos últimos dois anos, os diários de consumidor da P&G renderam mais de 200 horas de vídeo sobre as casas de mais de 50 brasileiros. Rotina, família e preferências em relação aos produtos comercializados foram alguns dos temas investigados por especialistas em ciências humanas e sociais.
“Com a pandemia e o isolamento, os brasileiros não estavam apenas sentindo falta das pessoas queridas, mas de si mesmos e da própria individualidade”, aponta Bauer. Entre as respostas, estão o lançamento de Downy Spray Higienizador; Ariel 3em1, que lava roupas, superfícies e pisos; a Pasta Oral-B 100%; e a linha Pantene Bambu, que combate o efeito do estresse no cabelo.
Vieram ainda embalagens de tamanhos maiores, como o Downy de três litros, para reduzir o deslocamento das pessoas durante a quarentena. Outro exemplo é a linha Herbal Pote, que sugere um item na cesta da consumidora, cuja compra já inclui shampoo e condicionador. As entrevistas também apontaram a tendência de hair masks para proporcionar o tratamento de salão dentro de casa.
Já do relato de mães entristecidas por não poderem fazer chás de bebês, veio uma plataforma que as ensinava a organizar uma celebração online, enquanto entrevistas virtuais compiladas pela Toluna com 1.124 mulheres entre 16 e 29 anos deflagraram a campanha #MeninaAjudaMenina pelo Fim da Pobreza Menstrual, encampada pela marca Always.
Mais de 15 mil estudos são extraídos de entrevistas realizadas com cinco milhões de consumidores em cem países ao ano. Os dados são coletados também por meio de social listening. Conversas online utilizando técnicas etnográficas, curadoria de informações públicas e real-time analytics complementam o aparato da empresa.
Seja por meio de investimentos em inteligência de mercado e human insights ou testando fórmulas, a empresa transforma os dados sobre as necessidades dos consumidores em ações capazes de desenvolver as categorias e apoiar o varejo.
Fala que eu te escuto
Outra gigante de bens de consumo, a Unilever trabalha com institutos como Kantar, Nielsen e Mintel, que analisam tendências de mercado por ângulos específicos. Estudos qualitativos, quantitativos e social listening agrupam tecnologias em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) a fim de orientar as inovações.
Da parceria com a Atento, a empresa mantém o contato direto com consumidores nas redes sociais. O retorno de Axe Musk e Marine às prateleiras e o lançamento de Rexona by Anitta são “projetos que só existiram porque os consumidores pediram, e nós os escutamos”, revela Ana Paula Duarte, diretora de mídia e marketing institucional da Unilever.
“Acreditamos na escuta ativa como aceleradora do processo de interação com o consumidor”, acrescenta. Uma das pesquisas mais emblemáticas, feita no início deste ano com dez mil entrevistados em nove países, mostrou que 56% das pessoas se sentem excluídas com o uso da palavra “normal” para descrever o tipo de cabelo ou pele.
O termo foi removido das embalagens e da publicidade dos produtos, resultando na criação do movimento Beleza Positiva. Nem o cafezinho escapa. Lançada em 2020, a Coffee++ mergulhou nos hábitos dos brasileiros para popularizar os cafés especiais, e descobriu a demanda por drip coffee, sachê para xícara individual, que traz a opção por uma dose da bebida.
O lançamento bimestral de microlotes também foi implementado a partir da análise do comportamento do consumidor. A experiência mais recente trouxe a variedade Asabranca, que marca o primeiro ano da Coffee++. “Fizemos somente 1953, ano em que meu avô Aprígio Tavares iniciou a caminhada no mundo do café, e tivemos um recorde de vendas nas primeiras 24 horas”, conta Leo Montesanto, CEO e fundador da Coffee++.
O garimpo vem das redes sociais da marca, que em apenas um ano soma mais de 170 mil seguidores, e do serviço de atendimento ao consumidor, que promete respostas em até 24 horas. Instagram e e-mails também guiam direcionamentos, rotas e projeções. Pesquisas rotineiras com a base de clientes ainda orientam o trabalho de marketing.
“A segmentação é um pilar importante para conectar nossos pontos de comunicação por meio de ações nos squads de CRM, marketing de influência, social media e mídia paga”, explica Montesanto. Segundo o executivo, os aspectos antropológicos ajudam a entender o comportamento humano, principal desafio de negócio em um mundo cercado por pegadas digitais.
“O importante é entender o quão é verdadeira a imagem ‘postada’ ou como aquela pessoa quer ser vista”, complementa.
Espírito nem sempre tão santo
Como se apropriar da netnografia para ser mais assertivo? Primeiro, Nunes indica a necessidade de haver uma mudança estratégica na concepção do que é marketing. A netnografia mostra como marcas, produtos, tecnologias e serviços fazem parte do cotidiano de um consumidor empoderado, que hoje se manifesta e faz uso político das redes sociais acerca de causas, candidatos, partidos e posicionamentos. Aqui, entra o conceito de comunidade discutido pelo polonês Zygmunt Bauman.
“Empresas devem encarar o empoderamento do consumidor como uma forma de apoiar o seu pertencimento a um determinado grupo. O consumo é consequência não de uma oferta comercial e sim de um belong. Significa pertencimento”, considera Roberto Kanter, especialista em marketing dos MBAs da FGV.
Marcas de luxo ostentam exemplos. Elas souberam transformar o digital em um canal de vendas e não só de promoções. “Nos últimos 30, 40 anos, esse mercado saiu do conservadorismo para ser o bastião da renovação do conceito de comportamento”, relembra Kanter.
Antes avessos ao e-commerce, os clientes desse segmento – acostumados a todo tipo de paparicação nas lojas físicas – agora compram produtos de coleção, e se conectam com as marcas. “Precisa entender que o posicionamento pode mudar ao longo do tempo”, indica Nunes.
No embalo dos skates da Supreme, Virgil Abloh, criador da Off-White que se tornou diretor criativo da Louis Vuitton, levou para as passarelas a moda das ruas e conseguiu conectar a grife ao jovem consumidor, que chega com a cultura urbana.
O zeitgeist age nesta ligação. Mas o espírito do tempo também pode dar sustos. A Lacoste só transformou o rapper carioca MD Chefe em garoto-propaganda – ele lançou a coleção Twisting the Legacy – após receber críticas. Os fãs viram a grife francesa lançar em agosto a campanha Crocodiles Play Collective – a primeira do seu Instagram no Brasil – com as influenciadoras Helena Bordon e Cris Paladinos, além dos cantores Jão e João Guilherme, mas sem a presença de rappers e funkeiros que frequentemente exaltam a marca em seus hits.
Rei Lacoste, de MD Chefe e DomLaike, é um deles. A música supera a marca de 40 milhões de visualizações no YouTube. “A minha relação com a Lacoste está totalmente relacionada ao meu estilo de vida, na verdade, de qualquer brasileiro, porque a gente tem esse apego com a marca”, comenta MD Chefe.
Decisões envelopadas
Clássico, esportista, street ou cool hunter, os perfis de consumidores da Lacoste no Brasil são acompanhados por meio de pesquisas nas lojas, mídias sociais, newsletters e site, além de KPIs como NPS (net promoter score). “Monitoramos as nossas redes sociais, e respondo também pessoalmente. Esse é o melhor modo para estar conectado com o seu público, atuando diretamente”, declara Sue Oyafuso, head de marketing na América Latina.
Segundo a executiva, o Instagram é a plataforma que mais sinaliza mudanças captadas por ferramentas como brand watch e social baker. “Ouvimos os nossos consumidores para estarmos abertos a todas as influências e termos relacionamentos autênticos”, crava.
Receosa, a associação de grifes de luxo à periferia escapa da definição clássica de renda, idade e gênero – critérios que já caíram por terra. “A questão não é o rapper vestir Lacoste, e sim que ele reproduz um escrito expresso de um zeitgeist de criatividade”, pontua Nunes. Por que não ter um jogador de tênis com a Lacoste em Rolland Garros e, ao mesmo tempo, um rapper da comunidade no Rio de Janeiro vestindo a marca? “O importante é que a Lacoste se comunique com essa juventude criativa”, orienta Kanter.
Outro exemplo foi o Nubank nomear a cantora Anitta como membro do Conselho de Administração da empresa. “Tem os que falam que não há nada de glamuroso nisso. Mas são pessoas que julgam a partir do seu olhar, que não entendem a conexão com o espírito novo”, exemplifica Nunes.
Das estradas, chegam mais evidências. Motocicleta do veterano de guerra norte-americano, a centenária Harley-Davidson enfrentou uma crise na década de 1970. De repente, virou sinônimo de fora da lei. Mas teve flexibilidade para acompanhar as mudanças e conseguiu se transformar. Hoje, é símbolo de aventura e “liberdade para a alma” de uma legião de grupos apaixonados pela marca em todo o mundo.
“Falta olhar estratégico, compreender a cultura, que marcas não são apenas propriedades das empresas. Elas são coconstruídas com os seus usuários”, reclama Nunes. Das tribos urbanas para as comunidades online, mais importante do que o mensageiro é a mensagem perene, que consegue se conectar aos novos significados. Do contrário, o storytelling não passa de uma história passível de cair no esquecimento ou ser reescrita por fantasmas que sempre voltarão para assombrar a marca.