Uma vez, há muitos anos, uma agência me procurou para pedir que eu deletasse de um blog – que já se encontrava desativado –, uma informação que não era muito bacana a seu respeito. Ela alegou que o dado sempre aparecia em buscas na internet, e isso a atrapalhava em concorrências, quando potenciais clientes pesquisavam sobre a empresa. Desde que entramos na era da internet, aprendi com os meus chefes e colegas de profissão que uma informação correta não se deleta. A informação não era positiva, mas também não era incorreta, ou falsa.
Sob ameaças das mais diversas, que evidentemente não se concretizaram, a discussão acabou com a manutenção das informações no referido blog desativado, e nunca mais ouvi falar do assunto. Outro dia fiz uma busca e já não encontrei mais traços do blog. Deu-me alívio, embora seja estranho ver um pedaço da própria história profissional ser deletado. Mas o fato é que há pedaços da nossa história dos quais não nos orgulhamos, como aquelas fotos do passado com roupas e cortes de cabelo de gosto duvidoso, por exemplo.
Tive a sorte de viver infância e adolescência pré-internet, portanto sem sustos: meus pais não postaram nas redes sociais as constrangedoras fotos “do meu bebê”. Brincadeiras à parte, a grande rede é cruel. E nela, dificilmente há esquecimento. É uma discussão recheada de nuances, de pontos de vista. Meu primo sofreu um grave acidente e, aos gritos de dor no asfalto, repleto de fraturas expostas, foi filmado por anônimos. Meses depois, ainda se depara, juntamente com seus familiares, com vídeos que registraram aquele momento sem a sua autorização. E as pessoas filmam (e postam) coisas ainda piores. Os anais da internet guardam materiais não autorizados, histórias que se preferia esquecer, crimes pelos quais já se pagou, identidades e gêneros trocados, violências e traumas superados, pegadas ou impressões digitais que permanecem ali, como num círculo de Dante, numa espécie de purgatório eterno.
Memória e esquecimento foram debatidos em um encontro da Aner e do Instituto Palavra Aberta, em Brasília, na semana passada. Um cabo de guerra entre a liberdade de imprensa e o direito à informação e a individualidade e privacidade de cada um. Entre “liberdade individual” e “interesse coletivo”, “direito ao esquecimento” e “direito à memória e à verdade”, entre liberdade de expressão e direito à intimidade. Discussão inspirada no caso dos irmãos de Aída Cury (assassinada em 1958, aos 18 anos de idade), que processam a Rede Globo por retratar o caso no programa Linha Direta, exibido em 2004. Um recurso da família ainda tramita no STF e, para o advogado do familiares, não se trata de censura a meios de comunicação, mas do direito da vítima de crimes ao esquecimento.
Seria uma notícia “de interesse mórbido”, que venderá jornal e publicidade e não agrega nada à sociedade. A emissora alega que o caso é de caráter brutal, de interesse da coletividade, sobretudo por envolver violência à mulher e deve ser discutido na sociedade. O advogado da Abert afirma que o passado desabonador de uma pessoa não deve limitar o exercício de liberdades constitucionais como o direito de informar. Sartre disse que o ato individual necessariamente envolve toda a humanidade. Historiadores e psicanalistas escarafuncham a memória e a consideram uma grande riqueza – especialmente aquilo que se gostaria de esquecer. Por outro lado, esquecer também faz parte e é importante para seguir em frente.
É um impasse tenso, em que todos parecem ter razão, e talvez em alguns casos as decisões devessem deixar de lado regras e senso comum e entrar no território da humanidade. Porque no fundo, estamos lidando, mesmo, é com a dor do outro. Só quem sente a dor na pele, é capaz de entender os irmãos de Aída, por exemplo. Tudo sempre muda de perspectiva quando se trata de si próprio ou de um familiar ou amigo querido. Não é uma ciência exata: demanda empatia, algo que não estamos acostumados a fazer, o de nos colocar no lugar do outro. Quem tem feito esse exercício ultimamente?