Antes de mais nada, preciso esclarecer que esta é uma obra de ficção, sem nenhuma relação com a verdade. Todos os personagens são fictícios e nascidos exclusivamente da doentia imaginação do cronista, cuja preocupação com a realidade dos fatos é quase nenhuma. Até porque qualquer leitor de mediana inteligência – e os meus são de sagacidade exemplar – vai perceber que não seria possível acontecer nada do que aqui será narrado. Vai lá, abrindo as necessárias aspas para marcar o início da história.
Era uma vez uma cidade que tinha um alcaide bastante empreendedor, de grandes ambições políticas. Era jovem, razoavelmente bem educado, de fina estampa, como se dizia antigamente. Um bom político, de grande futuro. Conseguiu fama de trabalhador incansável, graças às histórias que seus assessores contavam para os jornalistas sobre telefonemas e e-mails passados por ele durante a madrugada, inspeções de obras no início da manhã e permanentes cobranças à equipe, de preferência quando houvesse plateia. Ele era uma promissora promessa. Tinha, porém, um defeito: uma certa incontinência verbal, caracterizada pela total incapacidade de parar de falar, de fazer chistes em qualquer situação, o que é ótimo num companheiro de bar, mas pode ser muito perigoso para um político, ainda mais o representante de uma cidade inteira, por mais chistosa e folgazã que sua população possa ser. Vai daí que num dia aziago o tal prefeito exagerou na falastrice. Fez uma piada incontornável, dizendo que uma cidade vizinha era habitada exclusivamente por mulheres carecas e rapazes cabeludos.
Evidentemente o seu colega burgomestre da tal cidade aproveitou a deixa e, como se faz tradicionalmente, transformou a piada de mau gosto em questão de honra. Declarou guerra, conclamando a população a se unir para repudiar a aleivosia. Tudo que um governador inapto precisa é um inimigo externo. Basta se lembrar das Malvinas. E botou a boca no trombone, repercutindo o dito infeliz. Pois bem, a popularidade do nosso personagem principal despencou. Preocupado, ainda mais porque as eleições se aproximavam, chamou sua turma de conselheiros para ver se havia uma saída. Ninguém na frente dele iria ter coragem de dizer: calar a porra da boca. Mas um marqueteiro – brilhante por sinal – teve uma ideia que de início pareceu arriscada, mas, aos poucos, foi sendo aceita. Falar mais ainda disparates, gracinhas, trocadilhos, jogos de palavras, se possível piadas politicamente incorretas. Chamou-se de “efeito Bussunda”, referindo-se ao fato de que o falecido comediante dizia tanta besteira que ganhou com o tempo uma espécie de salvo-conduto.
Bussunda falava mal de viado, sapatão, petista, general, padre, funcionário público e professor da PUC, mas nunca ninguém reclamou. Como disse outro assessor “as besteiras, quando são muitas, se diluem e perdem o impacto”. Como não havia outro jeito, partiram para a prática, o que, convenhamos, não custou muito esforço ao prefeito. Logo depois, houve um problema qualquer com uns holandeses e ele disse que o pessoal da Holanda deveria “mamar na vaca”. Numa crise hídrica que secou torneiras de quase toda a cidade, ele chamou a imprensa e declarou que, se fosse em Paris, francês nem iria notar. Nisso era um mestre, convenhamos. Louvou “a beleza conhecida internacionalmente das bundas de nossas conterrâneas”, além de garantir que se sentia mais inseguro em Nova York que em sua cidade, até porque “os crioulões de lá são mais feios que os nossos”. No começo, os jornais registravam, ferviam as redes sociais. Sindicatos como os dos psicólogos (“uma espécie de político que ouve muito e não faz nada”) e dos aeronautas (“de comida de avião, prefiro aeromoça”) faziam manifestos irados, reclamando da falta de respeito à laboriosa classe que representavam. Outra especialidade do prefeito, a de falar mal da própria cidade, foi levada ao extremo. De brincadeira, falou em criar uma taxa única para os turistas, a ser paga no aeroporto na chegada, dando o direito de um crachá que livraria o visitante de ser assaltado. Segundo ele o programa TUA (Taxa Única de Assalto) substituiria o taxista desonesto, o porteiro de hotel achacador, o cambista clandestino. Pague uma vez só e ande tranquilo, seria o slogan da iniciativa inédita no mundo. Era piada, claro.
Mas no dia que ele fez esta brincadeira, para alegria dele e da sua equipe, não saiu uma única linha de crítica nos jornais. Ninguém estava mais ligando para suas piadas, nem se sentia ofendido com elas. Ele estava pronto para pleitear voos mais altos. Um dia deixou escapar: “esta merda deste país precisa de um cara de culhões como eu”. Estava lançada a campanha.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor