Um grupo de jovens corre e diverte-se em uma passarela urbana. Câmera dá um chicote para uma adolescente dando scroll down no celular deitada na cama.
Casal apaixonado contempla pôr do sol. P.O.V. de mountain-bike descendo uma ladeira imensa.
Close-up no olhar emocionado de uma senhora. Corredora vira a esquina e junta-se a um grupo enorme de outros corredores.
Torcedores brindam com copos de cerveja durante um jogo de futebol. Gringo turista pula Carnaval na Vila Madalena. Celebridade chega de helicóptero no topo de um hotel acobertada por seguranças e assediada por paparazzi. Fã metaleiro sobe no palco e dá um mosh na plateia.
Imagens em pop-up de aplicativos, comentários, compartilhamentos, emojis e memes mostrando a repercussão.
Portraits de influencers em anamórfica com luzes ao fundo. Galpão com dançarinas contemporâneas em luz volumétrica. Rostos de modelos refletidos em espelhos d’água. Extreme close-up em lábios passando batom. Homem estilo viking contemporâneo carrega uma tocha no meio da rua. Guerreiros multiplicados em CG correm em campo aberto. Criança ruiva pula alegremente em uma cama elástica. Cachorros fofos sacodem pelos molhados no jardim com regadores automáticos.
Câmera submersa e amigos se jogam formando inúmeras bolhas. Transição disruptiva para elementos abstratos em macro. Jovens em primeiro plano, e uma televisão pega fogo ao fundo. E… o que diferencia a minha cena da sua?
Recomeçamos em uma sala de desenho livre com modelo vivo. Cada artista observa a personagem de um ângulo específico, em um círculo predisposto. Ela posa frontalmente para uma luz difusa e natural que entra pelas janelas de um prédio histórico. Sua beleza é pós-moderna. Veste jeans surrado, jaqueta rosa flúor e atitude badass. Ou pode ser ele… um tipo mais ateniense, coberto por um tecido branco em pose leve, mas com músculos trincados. Podia ser também uma modelo plus-size segurando uma maçã vermelha pela boca portando um arco e flecha. Ou até mesmo um senhor daqueles bem magros com barba longa e grisalha – em chiaroscuro, perto de paredes rochosas e objetos inanimados.
Porém, agora estamos no deserto: dois carros em alta velocidade disputam a pista levantando poeira. No primeiro carro, um homem cinquentão com um topete bem moldado. Vemos os seus olhos claros pelo retrovisor. No segundo, uma femme fatale com os cabelos ao vento, cigarro no canto da boca. Ela acelera fundo, troca a estação do rádio e raspa a lataria do oponente.
E o melhor, temos drones, camera cars e tudo o que é necessário no caminhão de produção.
Na verdade, não é nada disso.
Estamos diante de vendedores de peixes em uma rua noturna e chuvosa, iluminada por neons chineses em São Paulo. Uma pilha de caixas é derrubada por arruaceiros vestindo roupas novas e mercadorias ficam esparramadas pelo asfalto. Um dos vendedores corre para pegá-los, mas desiste facilmente. Então… o que diferencia a minha cena da sua?
Ok. Um espresso antes, durante e depois. Cinco e quinze da manhã: vamos de Alexa, lentes Cooke, câmera na mão – em alguma paisagem intacta perto de José Ignacio. Seis e vinte da tarde: o momento mágico se despede e deixa saudades.
Ok? Entre mímesis e diegésis – todos buscamos o drama. Escrevemos histórias de memórias não vividas, por arquétipos literais e heróis mitológicos de mil faces. Um eterno loop de uma criatividade bem ou mal alimentada, uma nova chance à subjetividade objetificada em larga escala.
Somos orientados pelos mesmos meridianos, cortados pelos mesmos paralelos. Nascidos em vales vizinhos ou em megalópoles superpopulosas.
E o que me diferencia de você: a minha cena ou a sua?
Allyson Alapont é diretor de cena da Produtora Associados