Nos primórdios, à época do surgimento do Renascimento, uma burguesia rica se emancipava na Europa, afrontando a nobreza e os burocratas cultivados pela cultura aristocrática que tomou o velho continente no período das monarquias.

Como uma nova classe social disposta a pagar o preço para obter o trânsito, acesso e status social da velha nobreza, a burguesia iniciou um grande movimento de financiamento de arte, não somente adquirindo obras antes restritas à realize, mas também financiando artistas em ascensão, com o objetivo de aumentar suas coleções pessoais e mercantilizar as obras, alterando o status quo deste tipo de ativo que, desde os primórdios da Alta Idade Média, era restrito à realeza e Igreja.

A arte, portanto, passou a cumprir um papel de atalho social, o que elevou seu status cultural através de um fenômeno social de frenesi pelas obras criativas, que passaram de um simples deleite para uma ferramenta de poder e influência socioeconômica.

Guardadas as devidas proporções, nas últimas semanas verificamos um novo fenômeno social, influenciado pelo amplo mercado de blockchain, pelas criptomoedas e pelas fortes críticas à emissão de dinheiro pelos bancos centrais.

Esta nova trend, mais tecnológica que as antigas obras de arte renascentistas e tão seguro quanto o blockchain e as criptomoedas, é o NFT ou “non-fungible token“, um selo criptográfico de autenticidade que garante a individualidade de determinada obra no âmbito virtual, principalmente em jogos, músicas e ilustrações eletrônicas, como é o caso dos GIFs e memes – os quais são protegidos por direito autoral.

O selo NFT é protegido por blockchain, o banco de dados altamente tecnológico, criptografado e independente da web, cujas aplicações vão muito além das criptomoedas. O fato dos NFTs serem protegidos por blockchain garante a titularidade ao seu detentor e, a depender das condições da aquisição do NFT, pode também garantir a exclusividade, o que automaticamente pode influenciar o seu apelo e seu preço.

A exclusividade, ou melhor, a escassez, é um dos principais fatores para o incremento do valor de um NFT, como demonstram os casos recentes noticiados na imprensa, onde investidores pagaram centenas de milhões de reais pela titularidade exclusiva de uma obra digital, de um meme e do primeiro tweet da história.

Esta escassez aproxima o NFT do mercado de arte tradicional, onde os preços são impulsionados pela escassez de obras disponíveis de um determinado artista. Além disso, tal como ocorreu no Renascimento e seu mercantilismo, quando a arte acabou tendo seus preços inflados por conta da alta demanda, as grandes cifras atreladas às recentes transações envolvendo NFTs também são fruto de uma onda de interesse no tema.

No entanto, em que pese esta onda de interesse, ainda não há certeza ou segurança sobre a propriedade intelectual das obras com NFT, pautando-se as partes puramente na boa-fé, tendo em vista que o ambiente eletrônico fora do blockchain ainda permite que um terceiro se aproprie da obra de outro e a comercialize como se fosse sua, inclusive com um NFT, o que certamente viola as leis de propriedade intelectual brasileiras e os tratados internacionais da matéria.

Desta forma, passada essa onda de interesse inicial, nos parece que o mercado ainda precisará entender melhor o uso, a titularidade e a posse dos NFTs, para então definir eventuais normas e regramentos, não somente sob o aspecto da propriedade intelectual, mas também sob o aspecto tributário e de direito internacional, haja vista que a comercialização de obras de arte e intelectuais sempre foram um grande mecanismo para a viabilização de atividades ilegais, como lavagem de dinheiro e evasão de divisas para o exterior. Ou seja, a matéria envolve questões tributárias, até mesmo com relação aos royalties decorrentes do uso de obras com NFTs, e, também de direito digital com relação à blockchain e os smart contracts que poderão estar vinculados à obra.

Julia Somilio Marchini e Felipe Barreto Veiga são do BVA Advogados