Para os outros, somos aquilo que mostramos ser. E urnas comprovam a nossa imagem de nação: polarizada. Além dos resultados, houve também vários casos de violências - noticiadas o tempo inteiro -, que construíram essa imagem a partir do comportamento dos cidadãos.
Por que somos assim? Por que tanto ódio? A nossa união não seria para ter tranquilidade, justiça e paz? Ou isso é apenas uma utopia? Claro que é! A mesma idealizada pelo dono do termo, Thomas More, em seu livro Utopia de 1516. Na obra em que ele descreveu uma sociedade fictícia no sul do Oceano Atlântico, aqui na costa da nossa América do Sul, onde se praticam as virtudes da temperança e da moderação, vemos o pensamento utópico levantar a bandeira da racionalidade política e, ao mesmo tempo, tentar se equilibrar na corda bamba da fantasia. A utopia rejeita o mundo real e tenta se agarrar naquele mundo que deseja. É sobre isso e… Salve-se quem puder!
O nosso mundo só tem intriga, gritaria e confusão. É um solo adubado com muita antipatia, aversão, inimizade e repulsa por coisas, pensamentos e pessoas. A base desse adubo é o ódio. E “nesta terra, em se plantando, tudo dá!” como bem registrou Pero Vaz de Caminha assim que chegou por essas bandas. É, realmente, essa plantação que queremos que os nossos herdeiros colham? A nossa lavoura está com uma praga seríssima, um problema de imagem, de reputação. A curto prazo, é a imagem que mostramos para os nossos convivas: somos uma nação odiosa. E a longo prazo, fomos uma nação odiosa. E isso ficará incrustado nas imagens que contarão a nossa passagem na história.
Falando nisso, vamos recordar um passado bem remoto? A pré-história. É de lá que a gente carrega tanto ódio. Os nossos ancestrais sentiam medo de serem atacados por tribos rivais e esse medo unificava os grupos para se defenderem. Se transformava em ódio. Fomos, a duras penas, evoluindo como raça e deixando a barbárie para trás. Mas, os nossos sentimentos vieram na bagagem. Eles fazem parte do nosso sistema primitivo e não mudaram ao longo da nossa evolução. O medo, a raiva e todos os outros sentimentos continuam iguais. E é por causa do medo que continuamos nos unindo e deixando fluir a raiva para defender o que é nosso. Nos concentramos em um inimigo odiado em comum para unificar a nossa tribo. Mesmo que isso seja em pleno 2022. "O inimigo não presta" e somente o nosso grupo é "o legítimo e abençoado pelas divindades". O inferno são os outros, como já bem disse Sartre.
Freud bem pontuou que “os homens não são criaturas gentis e amigáveis que desejam o amor e que só se defendem quando atacadas. Um desejo poderoso de agressão tem que ser reconhecido como parte da sua capacidade". E, digo que, o medo de perdermos as nossas crenças e valores impelem esse desejo poderoso. Freud também explica que para ter ódio é preciso ter afeto. Afeto? Mas afeto não é uma coisa positiva? Nem sempre. É polarizado. A sua raiz está na palavra latina affectus, que significa disposição, estar inclinado a. Logo, é a partir do afeto criado que se demonstram emoções ou sentimentos. O afeto modifica o comportamento humano e influencia diretamente na forma como pensamos sobre algo. E, em caso de neutralidade ante a algo desconhecido, o afeto vai sendo construído desde o primeiro contato com aquilo e à medida que vamos conhecendo. Altera, inclusive, a forma como interagimos.
E ele fundamenta o sentimento de ódio, assim como o amor, no narcisismo porque amamos o que parece com o que somos, amamos aquilo que queremos. E odiamos aquilo que não reconhecemos que somos, odiamos o que queremos negar em nós, na nossa história, nas relações ou que tenha quebrado nossas expectativas.
A teoria do Estado do Espelho de Lacan propõe que, quando somos crianças, nós fazemos a construção de uma identificação com o nosso semelhante. E nos enxergamos através de algo ou alguém. Pode ser com espelho, mas também pode ser através da própria mãe. E, à medida que vamos tendo contato com outras pessoas, temos a percepção de sociedade onde nos identificamos ou negamos algumas características pessoais. Pensamento que tem continuidade com o do filósofo, economista e psicanalista Cornelius Castoriadis em sua obra “As Raízes Psíquicas e Sociais do Ódio” (1997) onde ele diz que o ódio surge no choque de realidades: de um lado o indivíduo fechado em si mesmo e que, posteriormente, é obrigado a se socializar e confrontar o que não é ela mesma.
Com esse princípio, Castoriadis fala que as sociedades precisam se fechar em grupos para se constituir. A identificação entre os membros do grupo confere uma sensação de completude e onipotência e o indivíduo estaria disposto a fazer qualquer coisa para defender e atacar qualquer ameaça ao significado que une o grupo. É aquilo que a gente já viu que acontecia na Pré-história.
E que também ganha amparo nas ideias de Rousseau ao dizer que o homem tem uma realidade individual e outra social. E, para entrar na sociedade, precisa fazer um pacto com a síntese das vontades gerais. Tanto na realidade individual quanto social, temos afeto pelas imagens tidas como nossas: a nossa família, a nossa Pátria, a nossa religião, a nossa crença, o nosso time de futebol, etc. Somos capazes de agredir e ser agredidos em nome dessa paixão narcísica que é a mola propulsora da agressividade. E a ira é uma reação imediata toda vez que essa imagem é insultada. E é também a ira que, infelizmente, serve como lápis que rascunha a nova imagem que apresentaremos para os outros.
Luciéllio Guimarães é estrategista de imagem pública, jornalista, empreendedor e professor universitário