Quando trabalhei na Argentina, tive a oportunidade de trazer o meu chefe para uma visita de prospecção no Brasil.

Tomamos uma boa estrada, rumo ao interior de São Paulo, e ele, admirado com a vastidão das belas paisagens, comentou comigo “com um país lindo desse jeito, como é que vocês conseguem banalizar tanto a vida?”.

Hoje, talvez ele nem viesse, receoso pela própria vida. Os brasileiros, somos vítimas de nossa própria fartura.

Com exceção de uma camada verdadeiramente miserável (no sentido de distante dos recursos naturais e da falta de acesso aos equipamentos de assistência social), somos uma imensa classe C, grande parte morando mal, ganhando apenas o suficiente para nos mantermos correndo atrás de sobreviver, e utilizando-nos de uma diversidade extraordinária de métodos para tentar sair da pobreza.

Há quem aposte nas loterias – 17% do bolsa-família, por exemplo, vão parar nas mãos dos operadores da jogatina avassaladora que tomou conta do Brasil; há outros que acreditam na “fé, força e foco”, que doura o discurso dos coaches, e que aceitam como eficaz essa romantização da busca de superação, dedicando tempo e energia para enfrentar e vencer uma estrutura social que se sustenta exatamente na desigualdade (sim, a chance, nesse caso, é ligeiramente superior à das loterias).

Há, por sua vez, quem assuma, para o mal, que num país desigual o que não falta é dinheiro (a renda dos mais ricos cresceu três vezes acima da média geral, entre 2017 e 2022), e, portanto, em vez de apostar, ingenuamente, nas chances ridículas das loterias, ou na meritocracia “espermatozóica”, que induz a acreditar que quem tenta, consegue, num mercado que oferece mais punheta do que cópula, resolve queimar a mufa para descobrir um jeito de beber direto da fonte.

Poderia ser diferente – essa parcela da população não desejar adonar-se do alheio na marra, e optar por viver como muita gente que se conforma com uma vida modesta e difícil, atribuída ao destino.

Poderia, mas o sistema insiste despudoradamente e numa frequência avassaladora, no valor e na importância de se ter mais do que os outros, a ponto de tornar a carência uma vergonha e uma humilhação permanentes. Quem resiste?

Por isso, tanto se mata e tantos se matam. Se há um termo equivocado para nos referirmos aos criminosos contumazes é chamá-los vagabundos. Não é verdade.

A maioria, provavelmente, trabalha mais do que nós, tramando golpes, enganando, ferindo e, muitas vezes, matando. Esse é, no entanto, apenas o viés mais tradicional de uma vida irregular, pois, com o advento da internet, surgiram inúmeras outras modalidades de passar o semelhante para trás e faturar com isso, que também exigem dedicação para serem bem-sucedidas.

E a atividade “pastoral” das igrejas neopentecostais, negócios que dependem essencialmente de talento para a engambelação e trazem retornos financeiros quase sempre muito interessantes.

Todo esse cipoal de organizações criminosas, em maior ou menor grau, nasce da banalização das vidas dos cidadãos por parte de um ente omisso, que deveria ser o principal responsável em mantê-las dignas: o Estado. Menos valor sempre terá a vida do outro, quanto mais valor se der à pregação do cada um por si.

Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
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