Em 2025, os Beatles ganharam um Grammy por uma canção inédita, que foi feita por meio de gravações antigas da música ‘Now and then’. Um quinto beatle ajudou na produção musical. Enganou-se quem pensou em George Martin, que contribuiu com a composição do icônico ‘Sgt. Peppers, Loleny Hearts Club Band’. Fez-se com o auxílio de uma inteligência artificial generativa, a qual recriou a voz de John Lennon.
Levantam-se, contudo, questões éticas e fundamentais sobre direitos autorais e propriedade intelectual. Há sérias dúvidas quanto ao uso da IA para as criações do âmbito ontológico. Nem sequer os neurocientistas sabem o que significa a palavra inteligência. Medem-se aspectos que a definem em partes, não em sua totalidade. O zero e um, dos computadores, não se aproximam de uma função contínua. E à vasta maioria dos fenômenos naturais não se aplicam funções que as expliquem.
Nesse sentido, a palavra inteligência foi sequestrada. Teremos um futuro sem futuro, cuja ferramenta para criá-lo, em todos os momentos, coleta dados do passado para fazer uma composição do presente. A inovação pode ser, para a contemporaneidade, um apanhado de informações que se organizam num terceiro elemento.
Mozart, Beethoven e os próprios Beatles inovaram, organicamente, a percepção da arte em uma sociedade, que está sempre em ebulição. O uso da IA para construir uma composição usando a voz de John Lennon pode nos servir como fonte histórica; mas, na medida em que se estabelece uma relação mercantilizadora, levando-a a concorrer a um Grammy, flagra-se a inversão pela qual enxergamos o conceito de produção artística.
‘Now and then’ ainda é um caso único. Os direitos autorais ainda pertencem aos detentores originais: Paul McCartney, Ringo Starr e os herdeiros de Lennon e George Harrison, com as gravadoras envolvidas. Neste contexto, usou-se a IA para “melhorar” e “finalizar” um material existente. Ou seja, a ferramenta não é um substituto integral da criatividade humana.
Mas a vitória de uma das maiores bandas de todos os tempos, com uma faixa reconstruída por IA, certamente, abre precedentes para outras mídias, como o cinema e a televisão, se locupletarem, pasteurizando-se. A recriação de vozes e imagens de artistas falecidos tende a ser explorada para fins nostálgicos e para novas produções.
É aceitável usar a imagem de artistas que não deram consentimento para isso em vida? O caso dos Beatles teve a aprovação dos integrantes sobreviventes e das famílias envolvidas, o que já é uma prática duvidosa. Isso nos remete a um outro caso, que é o da obra ‘Cem anos de solidão’, que virou série, com a autorização da família, mas apesar da vontade do escritor Gabriel García Márquez.
Seria ainda pior se tal fosse feito por um terceiro (uma empresa ou pessoa) que utilizasse IA para desenvolver uma performance de um artista sem o aval dos seus herdeiros. Isso ocorre porque o sistema precisa continuar pulsante, sempre vivo, aquecido, visando exclusivamente ao lucro das suas produções.
Questões como essas precisam ser discutidas e, obviamente, regulamentadas. Muito se fala da substituição dos humanos pelas máquinas. Esta é obra da atualização histórica dos nossos tempos, a qual financeiriza os processos e a mão de obra. O sindicato dos profissionais do entretenimento se mobilizou contra o uso indiscriminado da tecnologia. Compromete-se a sustentabilidade da indústria, prejudicando profissionais que empenham força de trabalho nessas funções.
A greve dos roteiristas e atores em Hollywood reivindicou regulamentação do uso da IA no cinema e na televisão. A arte sempre foi uma expressão da experiência humana. Introduzi-la nesse processo despersonaliza o objeto, o produto dos nossos trabalhos.
Os Beatles no Grammy nos desperta para a fragilização que há em nossas legislações quanto aos direitos autorais e ao futuro da criatividade como obra da operação humana. É essencial que o poder público e o privado trabalhem para a manutenção de direitos dos criadores. A arte está em jogo.
Rodrigo Calabria é sócio da CCLA Advogados