Minha mulher decretou que meu escritório doméstico é uma pouca-vergonha. A primeira reação foi a de dizer que era meu estilo, que é muito tarde para mudar. Quase apanhei.

Tive de ouvir que não se tratava de uma questão literária. Era sujeira mesmo. Paredes sujas, sofá molambento, livros espalhados, poeira. Um moquifo. Daí, sob pressão, precisei pilotar uma reforma geral e uma tentativa de arrumar o inarrumável.

Para compensar o sacrifício de criar uma ordenação mínima para montanhas de livros, papéis soltos e recortes, apareceram coisas deslumbrantes.

Encontrei exemplares da Revista Propaganda (que pertence ao PROPMARK), de mais de 50 anos atrás. Registre-se que já tinha comprado estes volumes como antiguidade, antes que me chamem de velho.

Nas páginas amareladas faço uma volta encantadora ao passado, para descobrir que em alguns aspectos a propaganda não mudou. Uma das coisas que me chamaram a atenção foi um artigo do publicitário Rubem Braga (ele mesmo, Rubem Braga, o grande cronista, já foi publicitário).

Com o título Anúncios, ele fala de seus problemas como redator de propaganda. Vale a pena reproduzir um trechinho. Com o devido respeito e abrindo as indispensáveis aspas, aí vai um naco do artigo assinado pelo grande Rubem Braga.

“Passei meu dia mexendo e remexendo no texto de um anúncio. Era um produto novo que vai ser lançado. Não sou nenhum perito neste ofício, embora não me falte certa prática. Ou melhor: sei apenas o bastante para saber como é difícil.

O leitor comum não pode imaginar que um anúncio é tão trabalhoso como um soneto. O poeta e o redator de anúncios não podem fazer como o jornalista e o prosador comum, que usam as palavras com certa folga. Têm de medi-las, estudar-lhes com minúcia o sentido preciso, o som e o tamanho.

Têm de examinar a frase depois de escrita, pesar sua força, limpá-la de todo supérfluo, imaginar o efeito psicológico que ela poderá ter.

Têm de se transferir para a alma do consumidor, despertar a vontade de comprar, apelando para seu conforto, seu senso de economia, sua vaidade, seu desejo de êxito social ou amoroso.

Ontem, depois de passar algumas horas mexendo com um único anúncio, tive de redigir uma crônica para uma revista.

Bati página e meia a máquina com rapidez, quase com satisfação, como um sujeito que, depois de andar muito tempo na areia fofa, chega a uma estrada de terra firme.

Valerá alguma coisa para o escritor o treinamento publicitário com toda sua minuciosa disciplina?

Não lhe será esse serviço militar útil para desenvolver nele o senso de economia verbal, de precisão, de clareza, de força de sugestão e lógica?

Em tese, sim. Na prática, porém, isso talvez dependa do temperamento do escritor.

O homem que passa o dia inteiro escrevendo dentro de uma técnica tão estrita, em que se exige o máximo de imaginação aliada ao máximo de concentração e de respeito a fatores objetivos e utilitários, pode muito bem, em sua hora de folga entregue à literatura, ter vontade de escrever coisas assim:

‘A lua de agosto semeava crisântemos e bicicletas verdes no abril de teu sonho de mariposa castanha…’”.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)