“Essa experiência me ajudou muito a entender por que eu fotografo e filmo: é como se fosse a minha maneira de tornar imortal essas histórias”

Em setembro de 2019, antes de ir pra Rússia para realizar um projeto autoral de fotografia e vídeo, eu fui pra Berlim passar 10 dias lá só pra ver um amigo querido.

A bem da verdade é que eu tava achando Berlim meio chata, eu sei que é uma cidade legal, mas ela não tinha muito da adrenalina que me motiva numa cidade nova.

Pois um dia eu fui pro parque, passei o dia lá lendo O Nariz, do Gogol, e escrevendo no meu caderno. E foi aí que tudo mudou. Era já fim do dia quando eu vi o Mike, um homem preto alto, muito alto, supermagro, de saia, com óculos escuros redondos de noite e um saxofone na mão. Chutei que ele estava na casa dos 60 anos. E Mike estava bêbado, gritava alto em inglês coisas que eu não entendia.

E tinha um amigo dele de uns 20 e poucos anos que usava um chapéu engraçado. Esse menino cantava enquanto Mike assoprava notas no embalo de um jazz em seu instrumento. Era lindo, ele estava tocando como se fosse o último show da vida dele.

Lembro-me que achei engraçado que ele tinha uma cadeirinha portátil, tipo aquelas de diretor de cinema, e pra onde ele ia a cadeirinha ia junto em sua outra mão. Ele parecia cansado também.

Foto: Arquivo Pessoal

Algumas poucas pessoas passavam e jogavam trocados numa caixinha que ele havia colocado perto de si. Ele era irônico, superousado, falava pra quem estivesse por perto coisas que talvez eu jamais teria coragem de falar, mas que eram totalmente verdade.

Eu havia decidido falar com ele, pedir pra fotografá-lo, talvez quem sabe até fazer um filme dele! E fui, com vergonha, quase arrependida de ter tido a ideia.

O Mike me disse com a maior naturalidade que eu poderia ficar com ele, acompanhá-lo.

Tirou de uma sacola sua caixa de madeira cheia de moedas e algumas notas de dinheiro que ele havia recebido durante o dia. Disse que estava com fome, perguntou se ele me desse dinheiro se eu poderia ir até um restaurante de lamen na esquina comprar seu prato favorito.

“É que eu já arrumei briga lá, não posso voltar senão o gerente não me vende nada”, disse ele. Passamos uns três dias nos encontrando, eu com minha câmera, ele com seu saxofone.

Um desses dias ele me apresentou a um casal também americano que cantava junto com ele no metrô.

Passamos uma tarde toda em vagões pelo subsolo de Berlim enquanto eles tocavam em troca de uns euros.

Eu filmava tudo, e vivia aquilo também como seu fosse a minha última imagem a ser captada.

De tempos em tempos o Mike me dava um dinheiro e pedia pra eu ir na banca comprar cigarros e uma garrafinha de vodka.

Ele dizia que já havia tocado com o Prince e mais uma porrada de gente muito famosa da música. Eu filmei ele tocando, ele falando, fazendo charme pra câmera.

No último dia que nos encontramos ele parecia ainda mais cansado, de cinco em cinco minutos abria sua cadeirinha para descansar. Ficou irritado que todos no metrô estavam imersos no celular e não queriam cantar a música que ele tocava.

Descemos então em uma estação qualquer, ele se despediu de mim dizendo que precisava ir, queria comer e voltar logo pra casa dele.

Foi muito rápida essa despedida, mas ele mudou completamente a minha viagem a Berlim.

Aqueles poucos dias viraram um check point de memória na minha vida. Eu consigo revisitar essa lembrança com muita intensidade, lembro das roupas, dos cheiros, dos sons. Eu vivi um filme, e eu fiz o meu filme.

Essa experiência me ajudou muito a entender por que eu fotografo e filmo: é como se fosse a minha maneira de tornar imortal essas histórias que vivo e, consequentemente, permanecer viva mesmo quando eu não estiver mais aqui ou não puder mais me lembrar com tantos detalhes dessas narrativas.

Larissa Zaidan é diretora de cena da Stink Films