Existe a teoria de que a origem do pião está em frutos de árvores. Dizem que o ser humano se inspirou nos frutos rodopiando ao cair dos galhos das árvores. O homem contemplando o ordinário, criou. Deu vida e nome a algo que antes não existia.

Essa história que ouvi pode até ser uma grande mentira, mas isso não importa. O que importa é que ela é possível. A verdade na arte é diferente da verdade na ciência. Seja o que for, ela não só conta a história do brinquedo, mas também diz um pouco sobre nós, seres humanos.

Em tempos de avanços bizarros nas inteligências artificiais, ChatGPT, Midjorney ou qualquer outro nome que venha nos assombrar a roubar nossos empregos — e eu sei que provavelmente você também está cheio de receios com as notícias a respeito disso —, me parece cada vez mais importante compreender, não o que essas máquinas podem fazer, mas sim o que elas não podem fazer. O que elas não conseguirão nos superar, nos roubar, nos substituir. Quase que por um instinto de sobrevivência. Porque em tudo o que esses robôs malucos entraram em disputa até agora conosco, perdemos.

O pião — agora dizendo com orgulho: uma criação nossa — copia um fenômeno natural e simples: o girar. Foi um momento de alegria quando o ser humano descobriu o rodopiar. Uma criação a partir de um sentimento não me parece uma coisa de robô, me parece coisa de ser humano. Inteligência artificial nenhuma poderia inventar algo tão gracioso. E que terrível seria o mundo sem piões.

Assim, tantas outras coisas fundamentais foram criadas com uma vida esbarrando na outra. Coisas necessárias que nos ajudam a lembrar quem somos e por que estamos aqui.

Sejam pinhas se tornando piões, um abraço se tornando abrigo ou o brilho do sol na água do mar se tornando memória.

Nós imaginamos, nos relacionamos com as coisas e criamos. Seres humanos podem imaginar.

E na graça desses rodopios, amores e memórias, a gente perde o medo de não ter mais função nesse mundo. Assim como os frutos caindo do céu, caiu sobre nós a tarefa divina de criar.

Vivos, presentes e atentos — bem humanos —, vamos transformando o ordinário.

“A árvore que tira lágrimas de alegria dos olhos de alguns, para outros é apenas uma coisa verde no meio do caminho”. William Blake

As máquinas continuarão a calcular e nós continuaremos a inventar piões.

Está tudo bem. Ficaremos com o que sobrou.

Nos sobrou sermos seres humanos.

Maví é diretor de cena da Brigitte Filmes