O Catar não é nenhum modelo de regime, mas a decisão de não permitir a venda de cerveja nos estádios deve ser considerada exemplar. Ela estabeleceu o limite a ser observado pelo mundo dos negócios, quando se trata de respeitar características culturais e preceitos legais estabelecidos por um país.

O fato de uma marca ter se tornado gigantesca, a ponto de já não se sentir obrigada a nada que não seja de seu interesse, e tente determinar, acima de qualquer outro valor ético, moral ou religioso, aquilo que pode fazer, por si só já representa uma bizarrice. O laissez-faire, próprio do liberalismo ocidental, há tempos, vem concedendo muitos mimos que acabaram criando vícios no comportamento do marketing das marcas.

E o mundo vai se tornando, paulatinamente, apenas um grande espaço para anunciar, e as populações nada mais que hordas de potenciais consumidores. O que revela uma redução absurda do significado das civilizações. É compreensível que a fabricante de cervejas patrocinadora do evento reaja com veemência, apenas gente de negócios brigando contra a ameaça às margens de lucro esperadas pelos acionistas.

Até aí, nada de novo no mercado. O que surpreende é que uma questão econômico-financeira, de interesse privado, de uma hora para outra, se converta em “causa” a ser abraçada por defensores da liberdade. Ridículo.

O pior é ver bebedores de cerveja se sentirem alijados do direito de se empanturrar de álcool, como se estivessem sendo privados de alguma coisa verdadeiramente importante. Só há uma explicação para uma reação dessa magnitude: o alcoolismo – exatamente o que o Catar combate, com as suas severas restrições. Multidões
embebedadas, no mínimo, causam tumulto, coisa que conhecemos muito bem aqui no Brasil. Nossa experiência com as consequências decorrentes do consumo exagerado de álcool em eventos públicos é por demais evidente.

Milhares de jovens morrem tragicamente no país, pelo simples motivo de que são autorizados a beber. Pior, são impelidos a beber. Ingerir álcool é prática tão corriqueira e incorporada à cultura dos brasileiros, que seria inconcebível entre nós qualquer iniciativa como a imposta pelo governo do Catar. Quando, quem sabe, precisássemos tal rigor exatamente pela histórica falta dele.

O fato é que estamos tendo a oportunidade de assistir a uma Copa do Mundo, em que a cerveja é um coadjuvante, controlado. Até agora parece que o campeonato não perdeu em brilho por isso.

As torcidas têm se manifestado com alegria, num ambiente de convivência bastante pacífica. O que demonstra que vender e consumir cerveja num estádio de futebol não é imprescindível para que o programa seja interessante e entusiasmante. Precisamos aprender que não é o álcool (ou seus patrocinadores) que faz do futebol um espetáculo.

Trata-se de uma associação de propósito meramente comercial, portanto ínfima, diante dos valores historicamente cultivados por uma sociedade. Se for para discutir seriamente questões controversas relativas ao Catar, a proibição da venda de cerveja nos estádios deve ficar longe dessa pauta. Afinal, é um dos seus melhores acertos.

Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
stalimircom@gmail.com