O ano de 2020 tem sido até o momento, no mínimo, um ano de acontecimentos marcantes. No âmbito do futebol, mais especificamente, um dos acontecimentos relevantes teve a sua data reservada para o dia 1º de julho, às 21h30. Em meio à pandemia da Covid-19, o Clube de Regatas do Flamengo e a Rede Globo travaram apoteótica disputa, digna de um grande clássico.

O que se discute são os direitos de transmissão dos jogos de futebol no Campeonato Carioca do clube de maior torcida do país[1]. O debate rapidamente se tornou público, diante da grande expressão do time. Em resumo, a Globo Comunicação e Participações S/A, até então titular dos direitos de transmissão dos clubes que disputam o Campeonato Carioca, e o Flamengo, após o término do contrato que anteriormente vigorava entre eles até a temporada 2019, não chegaram a um novo ajuste para que a Emissora pudesse transmitir as partidas disputadas pelo Clube na competição de 2020. Assim, na prática, a Globo possuía os direitos de transmissão de jogos disputados por todos os demais clubes na referida competição, exceto os relativos ao Flamengo. O resultado prático do “não acordo” entre Flamengo e Globo é que as partidas disputadas pelo Clube não estavam sendo transmitidas ao público.

A não transmissão dos jogos era embasada no artigo 42 da “Lei Pelé[2]”, que determina que os direitos de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo devem ser autorizados por ambas as equipes participantes da disputa. Desse modo, para que a Globo pudesse transmitir uma partida do Campeonato Carioca envolvendo o Flamengo e algum outro clube, ambos teriam que estar de acordo, o que não estava ocorrendo haja vista a não concordância do Flamengo com a renovação de seu contrato anterior com a emissora.  

A Medida Provisória n. 984[3], editada em 18 de junho, justificada na “emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19”, modificou tal exigência, promovendo importante alteração no referido texto legal[4]”, para definir que caberá apenas ao time mandante os direitos de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo. Vejamos a redação dada ao citado comando.

“Art. 42.  Pertence à entidade de prática desportiva mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo. (…)

A supracitada MP, assim, mudou completamente o cenário, já que agora o Flamengo, na condição de time mandante do jogo do dia 1º de julho, poderia autorizar outros canais de sua escolha para transmissão do respectivo jogo, independendo da obrigação de anuência dos times visitantes.

Considerando o impacto de tal modificação legislativa, e buscando impedir a transmissão de jogos do Flamengo em outros canais que não os seus, a Globo procurou o poder judiciário e moveu ação, perante a 10ª Vara Cível da Comarca da Capital – TJRJ, por meio da qual pediu, dentre outros pontos, a concessão de tutela de urgência para que o Flamengo se abstenha de transmitir ou autorizar a transmissão, por qualquer terceiro, dos seus jogos do Campeonato Carioca. Entretanto, até o momento da realização da partida, a liminar requerida restou indeferida, de maneira que o Clube estaria autorizado a administrar os seus direitos de arena nos moldes da Medida Provisória n. 984.

Pois bem. É justamente nesse contexto em que a data de 1º de julho se tornou marcante. Isso porque foi quando ocorreu a transmissão exclusiva da partida entre o clube mandante Flamengo e Boavista Sport Club pelo “FlaTV”, canal de titularidade do Clube de Regatas do Flamengo por meio do Youtube, Facebook, MyCujoo e Twitter, e que atingiu o patamar de maior transmissão esportiva via Youtube do mundo, superando o clássico Gre-Nal da Libertadores de 2020[5]. Além da transmissão exclusiva em seu canal, o Flamengo ainda lucrou com disponibilização aos torcedores de “ingressos virtuais” e com o crescimento de seu canal do Youtube – ao fim da partida, o número era de 4,2 milhões de inscritos (ao início da partida o número era de cerca de 3,9 milhões[6]).

Não é demais mencionar que em tempos de isolamento social, a força e importância das plataformas streaming são inegáveis. Verifica-se que em 2019 existiam cerca de 700 milhões de assinantes de streaming no mundo, segundo estudo publicado pelo The Economist. Enquanto isso, a TV por assinatura no Brasil vem experimentando relevante diminuição do número de seus acessos. Não por outro motivo, as próprias redes de televisão tradicionais do país como Globo, SBT e Record já anunciaram as suas plataformas “Globo Play”, “SBT Play” e “Play Plus”. Pesquisa do IBOPE divulgada durante a pandemia, mostrou que a audiência das plataformas de streaming superou, pela primeira vez, o índice de audiência da TV por assinatura no Brasil[7].

No âmbito do futebol, a tendência se verifica mesmo antes da pandemia do coronavírus. No início de 2020, por exemplo, a final da Recopa Sul-Americana, entre o Flamengo e Independente Del Valle (EQU) foi transmitida exclusivamente pela plataforma esportiva DAZN, que era[8] responsável também pela transmissão dos jogos do Campeonato Italiano ao público no Brasil. Fora do país, a negociação dos direitos de transmissão na linha do proposto pela MP 984 é observada em Portugal. O Benfica, com sua própria TV desde 2008, fatura com a comercialização dos seus jogos e chegou até mesmo a comprar os direitos de transmissão de campeonatos como o Brasileiro[9] em temporadas passadas.

Em que pese toda essa discussão, os aspectos jurídicos que circundam o tema são de suma importância à consolidação dessa crescente forma de consumo de conteúdo esportivo no Brasil e a descentralização das transmissões das partidas por canais televisivos tradicionais.

Embora marcante, o momento atual é de incertezas, na medida em que a MP 984 ainda não foi convertida em lei e que a discussão entre Flamengo e Globo não teve um fim. Para acirrar ainda mais a disputa, a emissora anunciou que não mais transmitirá os jogos do Campeonato Carioca[10], por  entender ter ocorrido a quebra da exclusividade decorrente da transmissão de 1º de julho pela “FlaTV”.

De todo modo, a disputa em questão parece trazer novos horizontes ao futebol nacional, aos consumidores de tal conteúdo e aos clubes que estão vislumbrando novas formas de monetizar os seus direitos.


[2] Lei no 9.615, de 24.3.1998

[4] Lei no 9.615, de 24.3.1998

*Isabel Cautiero é advogada do escritório Kasznar Leonardos.