A viagem do Brasil para Cannes não poderia ter sido mais turbulenta: um voo atrasado por mais de cinco horas, a pressão da imigração e, acima de tudo, a ansiedade de não saber o que encontrar lá. Durante a conexão entre Paris e Nice, tive a sorte de ver Celso Athayde, um admirado CEO afro-brasileiro responsável por alguns dos mais significativos projetos de impacto social no Brasil, no mesmo voo que o meu.

Não se pode negar a influência da representatividade brasileira no festival, com brasileiros vindos de todos os cantos do país, cada um trazendo um toque de sua cultura e regionalidade. Houve até batuques ao estilo samba com ecos de Pelourinho.

Foi muito gratificante ver pessoas novas e diversas caminhando com seus crachás de acesso ao lado dos estandes das grandes marcas. Inclusive, houve um painel totalmente dedicado à cultura negra, com personalidades como Issa Rae, uma artista e roteirista que representou a Barbie presidente negra no filme oficial da Barbie, e o renomado diretor Spike Lee. As mudanças, mesmo que pequenas, são evidentes. O estande da Inkwell + GroupBlack, onde essas celebridades estavam, era composto por quase 90% de pessoas negras, e muitos dos temas debatidos envolviam o impacto do investimento na cultura e economia negra sob a perspectiva do entretenimento e da comunicação.

Dentro do Palais, uma coisa é certa: não há mais lugar para campanhas sem autenticidade e diversidade. As campanhas mais bem-sucedidas são aquelas que provocam mudanças imediatas, mas também buscam deixar um legado duradouro. Se a ideia surgir com base em algum dado impactante, melhor ainda. Isso ficou claro durante as apresentações das agências, onde jurados de todos os lugares prestavam atenção e questionavam as métricas dos cases. E, claro, deu para perceber como o júri está se diversificando.

Na categoria de inovação, uma apresentação me cativou muito: foi a ideia do MouthPad, onde uma startup projetou um dispositivo semelhante a um aparelho dentário móvel que permite controlar dispositivos eletrônicos com a língua. O aspecto mais impressionante foi a defesa da ideia, feita por uma equipe não publicitária, composta por engenheiros e um designer especializado em acessibilidade. O próprio designer tinha apenas visão parcial. O projeto, apresentado com dinamismo e perícia, foi um dos mais memoráveis do festival.

Durante a premiação, a atmosfera do Palais atingiu seu auge. No palco, uma grande quantidade de trabalhos com técnica impecável e cheios de autenticidade. Além de ter a felicidade de ganhar um Leão com a campanha do Guaraná Antarctica pela Soko, que sempre representa muito bem os brasileiros, o que me deu mais satisfação foi ver a crescente presença de líderes criativos negros assumindo posições importantes na publicidade e na criatividade em todo o mundo. Ver pessoas negras subindo ao palco para receber prêmios de alto calibre certamente nos impulsiona a buscar muito mais.

Em geral, Cannes tem sido uma experiência incrível. A partir daqui, é possível perceber que, aos poucos, a mudança está chegando e, de fato, diversidade e legado ajudam a construir boas campanhas.

João Souza, creative l na Soko