Julie, jornalista do canal global de publicidade Adforum, baseado em Paris, me perguntou semana passada o que estaria impulsionando o poder global da criatividade brasileira nesse momento de coroação de suas qualidades em Cannes. Todos querem saber qual o segredo da criatividade brasileira para ser a primeira nação homenageada pela comunidade criativa global. E o que se diz, quando dizem “brasileira”, é a publicidade feita aqui e lá fora também por brasileiros.

Por isso, a minha resposta para ela e para os leitores sobre o nosso segredo, é muito simples: somos todos imigrantes. Temos o chip, a programação, os códigos para sermos imigrantes o tempo todo. E isso faz toda a diferença na criatividade. Brasileiro é imigrante desde que nasce. No corre desde a origem.

Para ir à praia, atravessamos uma Bélgica de distância. Quando visito a família em São José do Rio Preto, no interior, é o mesmo que atravessar Portugal de Guimarães ao Algarve. O que foi a nossa origem como pais, hoje é nosso modo de vida.

Todos os países da Europa juntos caberiam no Brasil. Todas as 50 nações caberiam com folga dentro do Brasil. 49 Reinos Unidos se acomodariam perfeitamente dentro do território brasileiro. As distâncias internas são tão grandes que, ao nos deslocarmos, praticamente emigramos. E as dificuldades que herdamos ao viver aqui nos traz resiliência e resistência perfeitas para encarar a indústria da criatividade em diferentes países.

Viver no Brasil é um jogo-treino de 24 horas que nos deixa craques da determinação e espírito de aventura. E devido às distâncias, outra qualidade floresce: nos aproximamos rapidamente das pessoas. Isso ajuda num mundo cada vez mais zangado.

Outra disciplina interna que nos prepara para o mundo são as regras que mudam o tempo todo. Encaramos um país novo a cada ciclo de crise que atravessamos. Isso explica o fato de o brasileiro se adaptar ao mundo em nome da missão de se comunicar. Brasileiro que vai para fora, não muda só de empresa. Muda a empresa. Veja Bernardo Romero, Edson Athayde, Bruno Abner, Fabio Seidl, Fernando Machado e iriam quatro laudas de citações para ser minimamente justo com todos os talentos que conheço e não conheço.

Sei que o termo imigrante não é famoso hoje em dia. Mas isso passa. É um grande superpoder. Porque imigrante tem fome. Fome de vida. Sou um imigrante nato. Meu avô era italiano; meu outro avô, filho de alemães e judeus; minhas duas avós, filha de italianos uma e a outra teve os pais que se conheceram no navio vindos da Espanha. Nasci no interior, iniciei minha carreira em Lisboa, entendi a profissão em Curitiba e cresci profissionalmente em São Paulo. Meus antepassados tinham muita fome. Eu tenho um tipo diferente de fome. Mas ela está lá, pedindo para seguir e atravessar fronteiras.

Somos todos imigrantes. Por isso que em Cannes a gente se sente em casa. A gente se sente em casa em qualquer lugar. E por isso que é natural Cannes homenagear um país misturado, caótico, alegre e talentoso. Por isso também que a representação dessa homenagem é um publicitário emigrado da Lapa. A criatividade continua sendo a melhor maneira de ir para outro lugar instantaneamente sem passar por vistos, cidadanias, aduanas. A passagem é uma folha em branco para ser preenchida, com uma ideia que mude algo.

A imaginação prática e útil do brasileiro faz ele viajar para um lugar novo antes mesmo do avião. Somos tão acostumados a emigrar e para isso é preciso tanta energia, que não é virar uma noite ou tirar uma estratégia da cartola que vai ser o problema. E daí gringo pira.

De onde vem tanta vontade, tanto talento? Performar bem num mundo caótico é com a gente. Adaptar-se a novas leis, costumes, línguas e linguagens muitos podem fazer. Agora fazer isso com um sorriso no rosto, é com a gente mesmo.

Flavio Waiteman é sócio e CCO da Tech&Soul
flavio.waiteman@techandsoul.com.br