Agora eu entendo como deve ser para os animais o martírio do confinamento. A imagem que nunca se apaga em minha memória é a do urso-polar num minizoológico que existia no Central Park, em Nova York. Preso num espaço de, no máximo, uns 50 metros quadrados, tinha em seus domínios uma fontezinha de entrada de motel fuleiro e um laguinho que mal dava para dar duas braçadas. Em seu martírio, o urso demonstrava o quanto lhe fazia mal viver naquele quarto e sala. Estava completamente lelé, a fera portentosa. Pulava no laguinho, saía do outro lado, subia num elevado que imitava montanha de gelo e voltava a pular. Todo dia ele fazia só isso. Pulava, pulava, pulava. E ouvia os gritos das crianças. Uma vez por dia alguém abria uma minúscula portinhola e passava uma mistura de carnes de peixes e aves. De tempos em tempos, aos gritos, dois ou três humanos o empurravam para um anexo do tamanho de um banheiro de empregada. E lá ele ficava, enquanto limpavam sua cela. Depois, de novo aos gritos, ele era devolvido ao seu cenário, falso na paisagem e mais falso ainda na temperatura.

Debaixo de seu casaco de pele natural, o animal enfrentava 104 graus Fahrenheit. Calor de Rio de Janeiro, paisagem de cabaré de zona. Já avariada, sua cabeça devia se transportar para as enormes paisagens brancas de sua infância, as longas esperas por um salmão distraído, as corridas atrás de focas, a sensação de navegar num pedaço de gelo boiando. A loucura, no caso desse urso, era uma bênção. Hoje seus antigos espectadores estão aprendendo a duras penas o que é ser confinado num zoológico. Não sei o que aconteceu com o urso, mas sei muito bem o que aconteceu com seus visitantes. Num espaço ainda menor do que ele tinha para chamar de seu, aquela turba barulhenta foi aprisionada. Os bichos estranhíssimos que trocavam de pele toda hora, que comiam coisas coloridas e não paravam de gritar, estão ainda mais barulhentos e mais estranhos. Muito mais malucos. E, tal como o urso, que daria a vida de bom grado pelo direito de correr atrás de uma foca, aqueles animais começaram a se arriscar para ter o supremo gozo de se sentir em liberdade. Risco de morte? Foda-se – é mentira da grande mídia. Contágio? Nada disso, apenas alarmismo de interesses espúrios. E tribos inteiras, tão insanas como o urso, saíram às ruas. E muitos morreram. A diferença é que o urso viveu sua loucura no seu espaço, não fazendo mal a ninguém. Os espectadores dele mataram e morreram. E, repetindo um costume que data de sua criação, apelaram para a magia. “Esse perigo não existe porque eu não quero que exista”. E inventaram um céu para ir como último caso, quando as coisas derem erradas. E ficaram doentes e transmitiram suas doenças. Não sei se urso tem tribo ou manada, não sou ursólogo. Mas humanos têm. E muitas vezes escolhem líderes mais malucos ainda. E criam uma verdade de ocasião. Voltando para o urso, as pessoas hoje estão conscientes que colocar um animal trancafiado numa cela minúscula é muito cruel. Aumenta-se cada vez mais o espaço para os bichos. Enquanto isso estão diminuindo o espaço para os humanos.

A toca das famílias hoje é um pouco maior que seus corpos. A parte externa das tocas – condomínios, ruas, bairros e shopping centers – é extensão de suas moradias. Se fechadas estas extensões, tal como o urso de Nova York, o homem enlouquece. Mas, diferentemente da fera, manifesta sua loucura criando teorias, inventando teses e justificando suas atitudes. E os mais sofisticados escrevem para jornais, aparecem na TV, falam no rádio. Outros postam várias vezes ao dia ironias que desrespeitam os menos loucos. E mentem, citam estatísticas, reproduzem falas de autoridades inventadas. E, como se lhes falta espaço vital, substituem essa falta por espaço na internet. Bem, acho que o urso de Nova York fez melhor do que eu. Ficou completamente louco sem escrever teorias sobre a vida. Enlouqueceu com dignidade. O pior louco é o que ocupa espaços e gasta o tempo dos outros só para tentar provar teses às quais ninguém tem o menor interesse.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor
(lulavieira.luvi@gmail.com
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