A recriação por Inteligência Artificial da cantora Elis Regina no comercial da VW está dando o que falar a ponto de o Conar ter aberto uma representação ainda a ser julgada.

Duas são as questões éticas a que o Conar se dispôs corretamente a enfrentar. A utilização de pessoas falecidas – Elis faleceu em 1982 – em publicidade por meio de tecnologia e a confusão que isso gera em crianças e adolescentes para discernir que não se trata de uma pessoa real, mas sim de uma ressuscitação digital.

A música do Belchior foi muito bem escolhida, em que pesem as típicas críticas das redes sociais. Mas vale registrar que as mesmas redes sociais também receberam muitos elogios.

O roteiro, maravilhoso. Direção de arte impecável. Trabalho que revela o talento de uma agência como a AlmapBBDO e que consegue se manter em alto nível de criatividade, bom gosto e execução perfeita.

A notória qualidade da Almap não é de agora. Vem desde o comando do genial Alex Periscinoto, pioneiro ao implementar na Almap o conceito de dupla de criação, método de trabalho até então inédito no Brasil. Depois do saudoso Alex, vieram Marcello Serpa e José Luiz Madeira, período em que a direção de arte da agência sempre se destacou em premiações como Cannes pelo bom gosto e estética impecável das peças publicitárias.

Os atuais sócios Luiz Sanches, que se transferiu para a sede da BBDO em NY, e Filipe Bartholomeu, responsável pelo dia a dia da agência em SP, têm conseguido honrar esse legado. Os dois e toda a equipe da AlmapBBDO passam para quem está de fora a percepção de que há naquele lugar um fio condutor das gerações dessa agência desde a década de 1950 quando foi fundada. Um DNA. Como uma família em que você nota no neto traços visuais e do caráter do avô.

Que assim continue, AlmapBBDO!

Voltando ao comercial da Kombi com a Elis Regina, a questão que me pega, talvez pela minha formação em Direito, é a impossibilidade de sabermos se a pessoa falecida aceitaria participar da peça publicitária que seu avatar digital fez. Nunca saberemos e essa para mim é a questão central.

Os filhos da Elis terem concordado não me parece argumento suficiente. Há direitos que não se transferem aos herdeiros. São os chamados direitos de personalidade ou direitos personalíssimos. Só se transferem, a meu ver, por meio de uma declaração de vontade expressa como, por exemplo, num testamento.

Elis Regina faleceu décadas antes de a humanidade vislumbrar a criação de avatares por meio da tecnologia. Era impossível ela saber que um dia seria recriada em áudio e vídeo.

Sem essa declaração expressa de vontade deixando claro aos herdeiros o que poderá ou não ser feito com sua persona post mortem, em áudio e vídeo, o melhor seria não se criar avatares de quem faleceu.

Assim, seus desejos não declarados não correm o risco de serem contrariados. Porque ninguém, nem os filhos da Elis Regina, têm absoluta certeza de que ela iria querer participar dessa campanha publicitária.

E não é pertinente levantar a suspeita de que ela não concordaria em fazer publicidade para uma empresa que contribuiu com o governo militar no Brasil. Essa linha de raciocínio, levada à exaustão nas redes sociais, se insere no campo do achismo. Outras pessoas podem dizer que a Elis Regina não toparia participar porque na idade que teria hoje, ela não desejaria mais aparecer, o que não é incomum no mundo artístico. Muitos preferem se recolher ao esquecimento.

Enfim, não dá para saber se a Elis Regina aceitaria um dia ser recriada por I.A. O mais acertado, portanto, do ponto de vista ético, seria não a recriar.

Pelé, por exemplo, nunca fez publicidade de cigarros e bebidas alcoólicas, portanto, recriar seu avatar para isso seria uma afronta à sua personalidade.

Da Elis, como nunca houve um episódio em que ela teria aceitado ou recusado participar de alguma peça publicitária de automóveis ou da VW, jamais saberemos se este comercial se alinhou ou se distanciou da sua personalidade. Jamais.

Tiago Ferrentini é diretor-executivo do PROPMARK