O que é a inspiração? Algo que vem e vai, o confronto com a folha em branco, os insights criativos, aquele segundo que muda todas as horas anteriores, ou simplesmente uma união de tudo isso de uma forma não organizada? Talvez seja difícil responder em palavras concretas, mas uma certeza eu tenho: é muito difícil prevê-la. Porém, uma coisa é certa. Olhando pela minha perspectiva, e no que eu acredito se basear a criatividade, a busca pela inspiração é constante. Nas coisas que eu consumo, nos ser e estar curioso, nas pessoas e marcas que admiro, é o “repertório embaixo do braço” que conduz os processos do dia a dia.

Meu background de comunicação (e de vida) passa através da música, essa fonte inesgotável de estética, design, audiovisual, histórias e ideias. Muito antes de ter feito faculdade de publicidade e propaganda, de fundar a Revista Noize/Noize Record Club, nossa produtora audiovisual, empresa de conteúdo, e começar a trabalhar no mercado, foi ela que guiou o caminho. Lembro bem de estar no Brique da Redenção (feira de rua clássica no coração de Porto Alegre), ainda pré-adolescente, em um domingo qualquer, entre móveis rústicos, artesanatos e antiguidades, e ser surpreendido com a existência daquele disco que até então nunca havia visto, daquele artista que eu obviamente já havia visto, mas não daquele jeito. Ele estava diferente, e na capa em letras arranhadas dizia ‘Off the Wall’ na parede de tijolos à vista. Mas, quando estava pensando sobre essa coluna, uma outra história (não minha) veio primeiro à cabeça.

Lembrei de uma história que li no livro ‘Creative quest’, de Ahmir K. Thompson, mais conhecido como Questlove, de quando ele encontrou seu destino num estacionamento na parte de trás de uma casa de shows nos Estados Unidos. Tá, isso pode parecer estranho, mas espera, deixa eu te explicar melhor.
Para quem não o conhece, Questlove é um baterista fantástico e um dos fundadores do The Roots, banda importantíssima na história do hip hop americano, e como se não bastasse é também um grande escritor, produtor, DJ, jornalista, diretor de filmes e está diariamente na TV aberta americana com o The Roots sendo banda da casa do programa ‘Late Night with Jimmy Fallon’.

Convenhamos, pouca coisa não é. Neste livro sobre criatividade, ele conta que bem no início da carreira da banda, eles estavam abrindo uma turnê de um grupo também muito importante chamado The Pharcyde (para quem não conhece, recomendo assistir ao clássico clipe de ‘Drop’, dirigido pelo Spike Jonze). Quest sempre foi muito influenciado pelo grupo, e após ter tocado seu set com o The Roots, estava no estacionamento guardando seus equipamentos. O Pharcyde tocava lá dentro, e enquanto estava na rua, ele escutava a banda através das paredes grossas do club. Foi quando o grupo começou a tocar uma música que nunca havia tocado e algo o chamou a atenção. Era ‘Bullshit’, que estaria presente no futuro disco da banda, e era diferente de tudo que já havia ouvido. Talvez pela sua não linearidade do beat, ou por aquela batida estranha, que tinha um bumbo que balançava e saía do padrão feito louco. Ele imediatamente interrompe o que estava fazendo, entra para dentro do clube para “adicionar visão” ao que estava escutando e, segundo as palavras do próprio, ele simplesmente “congelou”. Era nada mais, nada menos, que uma produção assinada por um moleque (ainda) desconhecido de Detroit chamado Jay Dee (posteriormente conhecido como J Dilla), que viria a produzir o próximo disco do The Pharcyde e mudar por completo os rumos do hip hop mundial.

Essa mudança não refletiu somente no impacto da cena do rap, mas também inspirou Questlove a transformar o próprio estilo de tocar bateria e reverberou em seus projetos futuros. Se antes ele mirava em ser um profissional “perfeito”, preciso a cada batida, foi somente após ouvir e entender como J Dilla abordava os beats, que entendeu que podia abrir espaço para o acidente, o inesperado, e como isso tudo pode ser fundamental na construção de uma ideia (ou de um jeito de tocar).

A partir disso, a história foi escrita. Esse novo jeito de tocar, de abordar as ideias através da bateria e do beat, se refletiram não somente em trabalhos maravilhosos no The Roots, mas também em álbuns que Questlove tocou como baterista ou coproduziu, como os clássicos ‘Voodoo’, de D’Angelo; e ‘Mama’s gun’, de Erykah Badu. Discos curiosamente gravados ao mesmo tempo no seminal estúdio Electric Lady, em Nova York, fundado por Jimi Hendrix nos anos 1960. Já, isso é história para outro texto.

Desde que li este livro, essa parte em particular me chamou muito a atenção. O ponto de como nós conduzimos nossas ideias para onde nossos caminhos já cruzaram anteriormente. E, acima de tudo, de como a nossa inspiração nem sempre vai ser confortável, premeditada, fácil de se assimilar.

São incontáveis as vezes nesses 17 anos de história de Noize, seja no veículo, na nossa produtora audiovisual ou no conteúdo, que mudanças demandaram momentos inspirados no acaso para resultar numa melhor direção criativa dentro da nossa empresa. Vimos a queda do mercado editorial, a transformação e a migração do veículo no Noize Record Club, ou quando começamos a gerar conteúdo online em um mercado que não fazia a menor ideia do que isso era.

Muitas dessas decisões vieram de momentos onde nada parecia fazer sentido, mas algo nos chamava ali. Estávamos ligados à nossa essência, ao nosso DNA, e dispostos a evoluir, em primeiro lugar. Posso traçar um paralelo com aquele guri do Brique da Redenção, de como o meu caminho mudou ao levar aquele disco pra casa, mergulhar na história de Michael Jackson, isso me levar ao Prince, à guitarra, ao rock, ao punk rock e à música brasileira. E simplesmente à vontade de unir toda essa vontade de engolir as coisas e transformar em outras coisas que aquele piá gostaria de consumir, que essa viagem de Noize e a comunicação para marcas surgiu. É muito importante saber de onde a gente veio, pra saber pra onde a gente vai.

Portanto, esteja pronto para ouvir o seu futuro ou mudar de rumo em um estacionamento de bar, numa feira de discos, ou em qualquer outro lugar. Se alguma coisa te deixa inquieto, principalmente em algo ou em um campo criativo que você domina, preste atenção. É sua mente te dizendo que há mais para ser processado do que a sua reação superficial.

Rafael Rocha é sócio-fundador da Noize, diretor criativo e diretor de cena