Quando o filme O Dilema das Redes foi lançado, no longínquo 2020, a influência dos algoritmos sobre nossas vidas ganhou mais visibilidade. Perfis foram excluídos. Notificações, desligadas. Mudar nossa relação com a internet demanda entendê-la a partir de suas dinâmicas mais profundas e vê-la como verbo, não como substantivo.

Demanda escavar até sua utopia-base: de que seria autônoma – inserida no capitalismo, porém com outras lógicas e dinâmicas. O que chegou a se concretizar, com colaboração em escala global e realmente descentralizada: iniciativas wiki, software livre, blogs, Creative Commons e tantas mais.

O que perdemos, de lá pra cá? Basicamente, os pilares da utopia: a multiplicidade, a diversidade, o hiperlink. Hoje compartilhamos prints, não links. Quando estamos imersos em transições complexas, como a atual, nossa percepção tende a ficar embotada e perde-se perspectiva. Mas lá em 2008, no livro The Future of the Internet – And How to Stop It, o professor de Harvard Jonathan Zittrain antevia o declínio da internet “generativa” – uma plataforma no mais amplo sentido, que convidava à criatividade e à inovação, desenhada para aceitar qualquer contribuição que seguisse regras básicas –, rumo às plataformas proprietárias que hoje habitamos.

A máxima de que “quando o serviço é gratuito, o produto é você” assusta, mas, na lógica do capitalismo de vigilância, não somos só o produto, e sim a matéria-prima para extração de conhecimento a partir dos dados. Uma promessa/capacidade de intervir nos próximos passos, já que o campo de possibilidades é 100% mediado pelos algoritmos. Esses que permeiam todas as relações sociais e profissionais mediadas por tecnologias. Algoritmos são somente códigos, e estão sob a mesma lei de direito autoral que protege livros, músicas e filmes. A Lei 9610/98 categoriza o código como “criação do espírito” – assim, como a arte, algoritmos também carregam os vieses e visões de mundo do criador. Tecnologias não são neutras: pessoas pensaram seu propósito, desenharam a experiência do usuário, elaboraram um algoritmo e decidiram quais dados iriam alimentá-lo.

Resultado? Uma concentração de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na História. Se informação é poder, quem detém informação sobre nós tem poder sobre nós – e muitas vezes não sabemos como funciona o jogo (ou que estamos jogando). Uma assimetria de poder que até se configura abusiva e deve ser exposta. Tipo redução de danos no uso de substâncias: a proposta não é deixar de fazer, é fazer sabendo onde se está pisando. Recentemente, a iniciativa Internet das Pessoas lançou a campanha O dia em que você disse sim, criação da VMLY&R, por um uso consciente e seguro das tecnologias. A IDP promove a educação digital, orientando famílias, empresas e escolas sobre aspectos humanos da transformação digital: economia da atenção, bolha dos algoritmos, inteligência artificial, indústria dos dados pessoais e privacidade.

Sem educação digital e regulação, só resta alarmismo. E, enquanto engatinhamos nesses temas, já adentramos as temáticas do metaverso e descentralização da web3: de usuários para criadores. Uma internet generativa? Para agências e marcas, há oportunidade de atuar com segmentação e assertividade, promovendo valores como transparência e ética. Ainda mais em tempos de pós-verdade. Urge criarmos outros como para esse grande o quê. E mirarmos naquela utopia, sem otimismo cego. Pois, como disse Eduardo Galeano, “a utopia serve para que não deixemos de caminhar”.

Paula Martini é orientadora digital, palestrante e idealizadora da iniciativa Internet das Pessoas
paula@internetdaspessoas.com.br