Há 130 anos, o Senado do Império do Brasil aprovava uma das leis mais importantes da história brasileira, a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão. Desde então, os negros brasileiros já conquistaram muito. Mas será que toda a realidade anterior a 1888 foi deixada para trás com a abolição?
Para celebrar o Mês da Consciência Negra, PROPMARK ouviu publicitários negros com o objetivo de saber quais os principais desafios enfrentados por eles nas grandes agências do Brasil e como combatem o preconceito.
Histórias diversas, relatos diversos
Os publicitários negros do Brasil possuem trajetórias diferentes. Daniele Mattos, por exemplo, conseguiu estudar e hoje é analista de comunicação na Mutato, onde também toca projetos focados em diversidade. Maurilio Filho, gerente de planejamento da Talent, possui um relato diferente.
“Não estudei nas faculdades que representam o mercado, sou nascido e formado na periferia da zona leste de São Paulo e esse contexto não se fazia (e ainda não se faz) representado dentro dos times das grandes agências do país. Então, diferente de muitas das pessoas que trabalharam comigo, eu não tive contato com o mercado enquanto estudava, não tinha aulas com professores do mercado, não era assediado pelas grandes empresas e, infelizmente, tive que fazer mais. Tive que procurar uma forma de ser notado”, explica o profissional.
Maurilio teve a ajuda de Rafael Camilo, que na época era gerente de planejamento da F/Nazca. Rafa, que também é negro, hoje está na Africa como diretor geral de planejamento para Itaú e também falou ao PROPMARK. “Costumo dizer que, talvez, eu tenha saído do armário duas vezes. A primeira quando me assumi gay e a segunda quando me dei conta que eu era um homem negro”, explica mencionando o colorismo, conceito utilizado pela primeira vez na década de 80, pela escritora Alice Walker e que explica como as pessoas negras de pele mais escuras sofrem racismo mais forte e explícito do que as pessoas negras de pele clara.
Já Edvaldo Correa, coordenador sênior de mídia da VML, acreditou no sonho e se tornou exemplo. “Venho de uma família muito humilde, sou adotado e quando percebi que teria que ingressar numa universidade, já com 26 anos e duas filhas, alguns me chamaram de louco. A minha própria mãe dizia ‘não vale a pena você estudar mais, filho. Você já estudou, terminou o colégio (ensino médio), trabalha demais e não tem nem tempo de descansar’. Isso muito por conta da cultura da minha família – somos em cinco irmãos e, até então, nenhum deles tinha cursado uma faculdade. Porém, quebrei este paradigma e estou indo ao encontro dos meus sonhos e, mais do que isso: incentivando a próxima geração”, comemora.
O profissional atuava no Grupo Pão de Açúcar como coordenador de segurança e, após participar de um processo de seleção interno, foi aprovado. “Quase um mês depois, assumi o cargo na extinta P.A. Publicidade (Agência House do Grupo Pão de Açúcar). Em dois anos, fui promovido ao cargo de coordenador de mídia”, exalta.
A luta das mulheres
“Ser negra, mesmo que de pele clara, o que já me privilegia em relação às pessoas de pele retinta, num ambiente majoritariamente branco, já é difícil, sendo mulher então, é duplamente desafiador”, diz Geovanna Souza, estagiária de planejamento da Havas Life. A fala da jovem escancara outra realidade para os negros brasileiros: se você for mulher, o desafio é ainda maior.
“Somos constantemente estereotipadas, independentemente do que fazemos. Somos sempre as problematizadoras que no final ninguém leva a sério. E quando usamos um tom um pouco mais firme, somos as ‘barraqueiras'”, explica Luma Oliveira, atendimento na Ogilvy. Thaís Borges, também da Ogilvy, mas da área de conteúdo, relata que, certa vez, seu cabelo foi comparado a um emaranhado de espirais para encadernação e chegou a ouvir: “Thaís, não venha trabalhar com o cabelo assim, viu?”. “São em momentos assim que ser negra é difícil, pois eu preciso respirar fundo”, lamenta.
A desigualdade salta aos olhos quando muitas campanhas defendem algo que não se reflete na agência, conforme explica Ellen Rodrigues, community manager na BETC/Havas. “Talvez as agências de publicidade chamem a atenção em razão do discurso muitas vezes progressista e liberal, mas que não sai do papel”, analisa.
As mulheres, muitas vezes, são mais cobradas que os homens. “Se vou pra reunião, preciso ter tudo na ponta da língua, anotado, decorado, porque quando eu começar a falar não dá pra ter erro, precisa ter embasamento, precisa ser claro, até porque demoram pra reconhecer uma mulher negra que sabe do que está falando”, conta Inaiara Florêncio, diretora de social media da Sunset.
“Algumas pessoas agem como se minha fala e meus atos tivessem de ser sempre validados por um homem”, relata Izabela Quirino Gabriel, estagiária de Insights do Programa 20/20 da J. Walter Thompson Brasil. Sua colega de agência, Jéssica Gomes, community manager, comenta que mulheres negras no Brasil acumulam os piores indicadores sociais. “Quando olhamos para agências, o retrato não é diferente. Ainda temos um número muito baixo de mulheres negras em cargos criativos, estratégicos, seja qual for o nível”.
Problema do país ou dos gestores?
Muitos dizem: “se não há muitos negros nas agências, isso é um problema do país, não dos gestores destas empresas”. Será mesmo? De fato o racismo é um problema estrutural do Brasil. “Porém, para além desse problema estrutural, o racismo também é uma problemática das pessoas brancas. São elas quem foram beneficiadas por esse sistema a vida toda, foram elas que beberam do privilégio provindo dessa fonte. Nossos antepassados construíram esse país e lutaram pela liberdade e vida digna do povo negro. Por isso, nada mais sensato do que as instituições avançarem no discurso e passarem a adotar uma postura antirracista”, explica Daniele, da Mutato.
“Vejo que existem poucas oportunidades dentro de qualquer outra profissão, é só olhar para o lado e você vai ver. Quantas vezes você foi atendido por um médico negro? Quantas vezes você foi a um fórum e o juiz era negro? Quantas vezes você entrou numa agência e o VP era negro? Estas são as perguntas que faço pra mim mesmo”, questiona Edvaldo, da VML.
Matias Santos, da produção gráfica da Talent, acredita que não haja vários negros em agências de publicidades, bem como em outras áreas e empresas, porque isso está ligado a um problema do nosso país. “Na minha opinião, isso não está ligado a gestores dessas empresas. É estrutural”, analisa.
Já Simone Bispo, community manager da Dentsu, é enfática: “Se não há negros nas agências, é total responsabilidade dos gestores!”. Para ela, se os administradores enxergarem a necessidade de igualar gêneros e raças, essa conscientização irá refletir não apenas no quadro de funcionários, mas também nos trabalhos planejados e executados, além de servir de exemplo/inspiração para outras agências.
O futuro
Conforme destaca Daniele, nos últimos anos houve uma melhora, mas o problema está longe de ser resolvido. “Só avançaremos de fato quando todos os níveis hierárquicos das agências e dos anunciantes refletirem – ou chegarem perto – do que é a população do nosso país, composta por 54% de pessoas negras”, analisa.
Independentemente do que irá acontecer, os relatos acima mostram que o esforço e a luta precisam ser constantes. É preciso lutar para um futuro em que Jucelia Guimarães, gerente de mídia da Jüssi, não seja a única negra na plateia de um evento focado em lideranças femininas.
É preciso lutar para que no futuro Alexander Davidson, redator da Z+, não seja questionado pelos motoristas de aplicativo quando for deixado no prédio da agência: “Você trabalha aqui? É segurança?”.
Lutar para que Luana Maso, diretora de mídia da Ogilvy, não seja uma das únicas negras com tal cargo. Ou que sua colega de agência, Jéssica Novais, não seja questionada pelas tranças de seu cabelo.
Lutar para que o sonho de Edvaldo, da VML, vire realidade. O mesmo sonho de um pastor norte-americano que brigava por justiça e paz, mas foi morto a tiros. “O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor da sua pele”.
Enquanto este sonho não vira realidade, talvez, precisemos focar nos mais jovens, como Patrick Araújo, estagiário de planejamento da Dentsu, que diz: “Espero que as agências abram cada vez mais suas portas para nós, para que dessa maneira possamos puxar outros e mais outros, estamos juntos e unidos, seremos sempre uma força. Iremos sempre resistir, assim como Zumbi e Dandara. Para aqueles negros que cogitam a publicidade eu digo: venham, estaremos te esperando.”