Que as montadoras investem dinheiro e tempo em tecnologia, evolução em eficiência e design, ninguém duvida. Que os temas eletrificação e mobilidade estão na cabeceira das empresas, também não. E sobram exemplos mundo afora. No entanto, há um ponto da mobilidade ganhando força também no Brasil: compartilhamento de carro e soluções que colocam o veículo como serviço, e não necessariamente como um bem a ser adquirido.

Aos poucos começam a ganhar voz e identidade iniciativas nesse sentido e a mais recente é da Toyota, que apresentou a Kinto Brasil. A empresa de soluções de mobilidade busca novas categorias de usuários, entre indivíduos e corporações.

“Em algum momento a mobilidade tende a ser o principal negócio da indústria” (Foto: Tim Foster / Unsplash)

De acordo com a empresa, no período pós-pandemia, há uma tendência de parte da população evitar o transporte público, devido à aglomeração. Neste sentido, a demanda pelo uso de carros, mais do que a propriedade dele, deve crescer.

Além disso, a nova marca integra a visão estratégica global da Toyota em se tornar uma empresa de mobilidade. Ela chega à América Latina, começando por Brasil e Argentina, e foi criada como uma joint venture entre a Toyota Financial Services Corporation (TFS) e a Mitsui & Co, um conglomerado japonês focado em investimentos e operações estratégicas.
A Kinto Brasil começa este mês com compartilhamento de carros. Ela assume o Toyota Mobility Services (TMS), que desde seu lançamento, em setembro de 2019 no Brasil, teve mais de 65 mil downloads do aplicativo, 18 mil usuários registrados e mil carros alugados. Agora o TMS passa a se chamar Kinto Share. A partir de um aplicativo para smartphone, ele oferece seguro, veículos conectados com telemática, acessórios e valet. Os usuários têm o suporte da Rede Toyota de Concessionárias durante o processo, e podem ter acesso aos híbridos da Toyota e da Lexus.

Roger Armellini: tendência observada que deve chegar ao Brasil (Foto: Divulgação)

Além desta migração, até o fim do ano a marca lança o Kinto One, serviço de gestão de frotas corporativas. Ele propõe redução de custos e o aumento da eficiência na operação dos clientes, aplicando conceitos do TPS (Sistema de Produção Toyota) para gestão em áreas como segurança, logística e gerenciamento de processos.

Roger Armellini é diretor de mobilidade e transformação de negócios da Toyota na América Latina e Caribe. Com mais de 20 anos de experiência na indústria automotiva, ele conta que o projeto já estava desenvolvido e a pandemia apenas acelerou a demanda por mobilidade individual. “É uma tendência já observada lá fora e deve chegar no Brasil: as pessoas ficaram receosas quanto ao transporte público e estão procurando alternativas como o carro, seja para comprar ou para usar. Não acreditamos que o modelo tradicional vá desaparecer, mas que em algum momento e ninguém sabe dizer quando a mobilidade tende a ser o principal negócio da indústria automotiva”, afirma.

Outra iniciativa recente que pode crescer em breve é a do Groupe PSA. A empresa tem a Free2Move, marca de mobilidade com produtos para público B2C e B2B. O portfólio B2C tem car sharing, aluguel de curta, média e longa duração, reserva de vagas e carregamento de veículos elétricos. Já no campo B2B, além das ofertas anteriores customizadas, a empresa adicionou consultoria ligada à transição energética das frotas (em forte ascensão no mercado europeu), bem como o Connect Fleet, solução de gestão de frotas e telemetria. Este último foi a porta de entrada da marca Free2Move nos mercados brasileiro e mexicano em 2019.

Mesmo a chegada do Connect Fleet ao Brasil, no Salão Internacional do Transporte Rodoviário de Cargas (Fenatran), em outubro do ano passado, seguiu um passo anterior: o C-Seguro – seguro conectado baseado no uso do cliente -, no lançamento do Novo SUV Citroën C4 Cactus, em 2018, no Brasil e na Argentina. Pablo Averame, vice-presidente de marketing, produto, mobilidade e serviços conectados América Latina do Groupe PSA, afirma que houve retornos positivos dos clientes. “Temos a convicção de que estamos no caminho certo, por isso continuamos avaliando quais são as soluções que poderiam ser lançadas no Brasil e em outros países da América Latina a curto e médio prazo”, comenta.

Criado em 2016 pelo Groupe PSA, o Free2Move, que oferece um leque de soluções B2C e B2B, começa a chegar ao Brasil (Foto: Divulgação)

Consumidor no comando
Engana-se quem pensa que a Free2Move, criada em 2016, que começa a dar as primeiras voltas no Brasil, é algo exclusivo da companhia. A iniciativa nasceu multimarcas para abranger toda a frota de veículos, independentemente da marca. “Quando desenvolvemos uma solução de mobilidade, colocamos a necessidade do cliente em primeiro lugar. Temos clientes que estão utilizando a solução em modelos que são e não são do Groupe PSA ao mesmo tempo, tendo a informação em um painel de gerenciamento, o que eleva a produtividade operacional.”

Para o executivo, a pandemia trará impactos significativos em como o consumidor utilizará os veículos e outros modais. São dois olhares: a posse ganhando relevância por projetar segurança ao consumidor de não compartilhar o carro, e o veículo compartilhado oferecendo uma sensação de maior segurança quando comparado ao transporte público. “Adicionalmente, imaginando um modelo de utilização rotativa, seguramente a higienização dos veículos será um critério muito importante no processo de decisão do consumidor por utilizar um serviço. Porém, ainda é cedo para darmos uma reposta definitiva, por isso estamos atentos às mudanças de comportamento dos consumidores, uma vez passado este período”, diz Averame, do Groupe PSA.

Cautela e desafios
A Volkswagen também estuda ampliar suas iniciativas em mobilidade. Na Europa, ela tem a Moia, empresa de mobilidade com conceito similar ao Uber, mas só com veículos elétricos que locomovem mais de uma pessoa. Já no Brasil, ela lançou em 2019 o VW Move, serviço de aluguel de carros em parceria com a Fleet Solutions, da VW Financial Services.

VW Move tem projetos-piloto em duas cidades de SP e deve ter mais um em breve (Foto: Divulgação)

O projeto permite alugar o veículo no momento que o cliente deixa seu carro para as três primeiras revisões, pode ser usado se ele deseja esticar o test drive e deixar seu carro por mais tempo na concessionária. A empresa tem um projeto-piloto em dois dealers (Faria e Caraigá/SP) e deve ter mais um no interior ainda no primeiro semestre.

Fábio Rabelo, gerente-executivo de digitalização e novos modelos de negócio da Volkswagen América Latina, explica que a pandemia não alterou a estratégia, porque a empresa já estava trabalhando na digitalização e se preparando para um mundo mais conectado. Além de testar carros compartilhados, a companhia não comenta os próximos passos no Brasil, apenas que está trabalhando em criar “soluções para o cliente que surpreendam o mercado positivamente”.

Para o executivo, o cenário é de transformações e de cautela porque o consumidor de carro hoje no Brasil é o mesmo consumidor do passado. “As pessoas que antes gostariam de comprar carro, hoje continuam querendo adquirir um automóvel. Com a pandemia, muitas viram a necessidade de ter um carro próprio e não ficar entrando em carro compartilhado, tanto que as empresas de aplicativo estão investindo em comunicação para reforçar que o carro é seguro e protege o cliente. Não há como assegurar que a pessoa que andou antes no veículo não tinha o vírus assintomático. Então, as pessoas começam a repensar que num momento de dificuldade é importante ter a liberdade de possuir o carro próprio”, pondera.

Kinto Brasil inicia atividades este mês, primeiro com o Kinto Share assumindo o Toyota Mobility Services, e até o fim do ano com o Kinto One, serviço de gestão de frotas corporativas (Foto: Divulgação)

Isso não significa que serviços de mobilidade não vão ganhar força, apenas que o cenário, apesar de ter muita mudança, não será alterado da noite para o dia. “Estratégias de uma empresa como a Volkswagen são construídas no longo prazo e não de hoje para amanhã, pois isso seria insustentável. As montadoras podem evoluir mais neste negócio, mas tudo vai depender da maturação de mercado. Não diria que hoje é uma aspiração das montadoras mudar o foco atual do negócio”, observa. Por esse contexto, em sua avaliação, pelo menos por enquanto o compartilhamento de carros ainda não pode ser considerado um novo grande negócio. “É necessário entender como será o comportamento do consumidor, a aceitação do mercado e como será implementado. É um desafio no qual as montadoras estão avaliando os cases bem-sucedidos ou não. E é um segmento a ser explorado com muita prudência”, diz.

Uma das três maiores locadoras de carros no Brasil, a Movida avalia as iniciativas como movimentos naturais e não vê motivos para se preocupar. Edmar Lopes, CFO da empresa, acredita que os desafios fazem parte do desenvolvimento do mercado. “Sempre dissemos que o mercado de locação era muito grande. Tudo que ajuda a dar visibilidade à locação ajuda o mercado como um todo. Isso sempre esteve no nosso cenário como algo possível de ocorrer. Elas vão atuar em nichos específicos e não têm a escala que temos. Vemos como algo natural, uma vez que é um mercado que cresce, há mudança no perfil de consumidor e a experiência melhorou”, comenta.

Enquanto empresas testam iniciativas, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostrou no balanço do primeiro semestre que as transformações vão dividir a atenção com a recuperação do “fortíssimo impacto” da pandemia. A produção acumulada de 729,5 mil veículos representa queda de 50,5% na comparação com o primeiro semestre de 2019.

Edmar Lopes, CFO da Movida: movimentos das montadoras são naturais e fazem parte do desenvolvimento do mercado de locação (Foto: Divulgação)

Em junho, apesar de a produção de 98,7 mil unidades ser 129,1% superior à de maio, foi 57,7% inferior à de junho do ano passado. Com esses dados e baseado nas expectativas econômicas do país para o segundo semestre, a projeção é de 1,630 milhão de automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus em 2020, volume 45% inferior ao de 2019.

Luiz Carlos Moraes, presidente da associação, destacou que a situação é de uma crise maior que as enfrentadas nos anos 1980, 1990, em 2015/16, e ocorre num momento em que as empresas projetavam um crescimento anual de quase 10%. “Um recuo dessa magnitude no ano terá impactos duradouros, infelizmente. Nossa expectativa é que apenas em 2025 o setor retorne aos níveis de 2019, ou seja, com atraso de seis anos”, avaliou.

De acordo com outras fontes do mercado, ainda é muito cedo para dizer se os novos caminhos percorridos pelas montadoras devem impactar positivamente nesse cenário de recuperação. No entanto, todos avaliam que os avanços já existentes e em desenvolvimento serão “essenciais”.