Silvana, no dia 8 de abril, foi fazer uma reunião em São Paulo. Por volta do meio-dia me telefonou avisando que tudo tinha sido ótimo e ela estava a caminho do aeroporto. De meu lado, relatei uma leve chuvinha nada preocupante. Beijos, beijos. Do meu escritório eu via as nuvens sobre Niterói e um bolo de algodão negro rodeando as montanhas do Rio. Os bichos, sobretudo os que voam, por milênios de sabedoria acumulada, agiam como se pressentissem o que ia acontecer. Não procuravam abrigos, ou não pareciam fazê-lo. Mas voavam tontas, piando, grasnando, pipilando, fazendo todos os barulhos que os dicionários registram. Cachorros e gatos, já meio humanos, pressentiam alguma coisa estranha, mas séculos de convivência conosco já os tornaram um pouco menos sábios e se sentiam inquietos sem saber bem por quê. Pouco depois, o mundo acabou. Mais tarde se soube que há décadas não caía tanta água. A cidade, despreparada, parou. Dos morros, orgulho e glória do Rio de Janeiro, desciam pedras, lama, casas, lixo. Monumento à inépcia, a ciclovia à beira do mar teve um pedaço levado pela lama. Uma ironia.

Um prefeito a construiu e se esqueceu da força das águas de baixo para cima. E um dia ela ruiu exatamente pela força das ondas. Seu sucessor consertou um pedaço e fez um filme dirigindo um trator por ela. Mas se esqueceu da força da lama vinda de cima e pelos lados. E lá foi outro naco. Dizem que Tim Maia, em cuja memória a ciclovia foi batizada, numa sessão espírita, do seu jeito gentil e carinhoso, já mandou avisar que… bem, deixa pra lá. Como a gente dizia quando criança, não se deve meter a mãe no meio. Eu, que divido a rua com os fundos da casa do finado Roberto Marinho, felizmente não perdi nada. A não ser a rua. O que era antes a ladeira que dá acesso ao Cristo Redentor é hoje uma cratera. Montes de paralelepípedos se amontoam junto às paredes das casas. A tampa do bueiro da entrada de minha garagem se foi para nunca mais. E eu me considero um cara de sorte, ao ver a cidade pela TV. Outros cariocas perderam as coisas que juntaram durante a vida. Não há nada mais exposto que uma casa invadida ou semiderrubada. Aquilo que deveria ser da mais absoluta intimidade, a fronha do Mickey, o coelho encardido sem o qual a criança não dorme, a TV de tubo, fica exposto na nudez mais vexatória que pode existir. Não há como manter a dignidade diante da mesa de fórmica coberta de plástico e cheia de lama. Um guarda-roupa depois que sai do estado de loja, deve ser preservado como um penico. É íntimo como gostar do cheiro do próprio peido. E as entranhas da casas ficaram expostas como um grito de angústia.

Enquanto isso, me envergonho da pequenez de meu drama particular. Os aviões com destino ao Rio têm seus voos suspensos e Silvana fica, juntamente com uma multidão, em Congonhas, sem saber de nada, só ouvindo boatos e não acreditando em mim quando garanto que, até onde eu sabia, a nossa casa continuava de pé, ainda que nossa cozinheira estivesse desaparecida. Antes de fazer suspense: simplesmente não conseguiu sair da casa dela. O governador está sumido, provavelmente fazendo um curso de tiro especializado para acertar “só na cabecinha”. O prefeito, depois da cidade inundada, chama os terceirizados da prefeitura para fornecerem seus caminhões. Ninguém chega. Por quê? Estava uma puta chuva, porra! Isso antigamente era piada de português. Hoje é tragicomédia de carioca, pois os portugueses estão mais preocupados em cuidar da multidão de imigrantes brasileiros que estão chegando dispostos a “fazer a Europa”. O gerente do cinema de um shopping fecha as portas para que crianças não venham sujar o lugar, tentando se abrigar na sala de espera.

Ao lado, uma casa de show (Blue Note) faz exatamente o contrário e franquia suas instalações para quem não podia ir pra casa. No fim da tarde há um hiato na chuvarada e os aviões começam a descer. Silvana chega em paz. O motorista do Uber dirige cuidadosamente entre os escombros e ao chegar em casa ajuda com as malas subindo as escadas. Vejo na TV centenas de pessoas sendo acolhidas por igrejas, casas de amigos e até desconhecidos. O governador sumiu. O prefeito garante que “na próxima” estará preparado. Espero sinceramente que não precisemos.

A expressão “piove, governo ladro” era muito usada por minha avó e na linguagem dela queria dizer mais ou menos: “chove, governo ladrão!”. Governo ladro ela usava para tudo. Era anarquista.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)