Completando 22 anos nesta quinta-feira (29), a Netflix sinaliza, a cada balanço aos acionistas, uma maior diversificação de receitas. O documento foi divulgado em julho e destaca o esforço de licenciamento e parceria com marcas como Coca-Cola, Nike e Burger King para Stranger Things, além de lembrar o anúncio de jogos com a Epic Games, desenvolvedora do fenômeno Fortnite. No report anterior, de abril, a questão de parcerias nem foi citada.

Um dos formatos mais utilizados pela plataforma tem sido o product placement. Com mais de 150 milhões de assinantes e alcance de 190 países, a empresa parece ter aberto a casa para inserção de produtos e marcas em seus produtos originais. Além das já citadas, Samsung, Estrella Galicia e Amazon também entraram por essa porta.

No ano passado, o longa Black Mirror: Bandersnatch fez o espectador escolher se o protagonista tomaria café da manhã com os cereais Sugar Puffs ou Sucrilhos. Em junho, o filme Mistério no Mediterrâneo, com Adam Sandler e Jennifer Aniston, exibiu uma série de marcas, inclusive, medicamentos.

Se de um lado, a porta está cada vez mais aberta, do outro tem gente querendo entrar e também tem quem não pretende sair. Mónica Vizcaíno, diretora de marcas da Estrella Galicia Espanha, explica que o investimento em product placement com diferentes produtoras e plataformas tem o objetivo de manter contato com o consumidor final de maneira “diferente e notória”. Segundo ela, a experiência nas duas primeiras temporadas de La Casa de Papel “foi espetacular” e animou a empresa a continuar na terceira, que estreou em julho, e na quarta, já confirmada.

Os KPIs incluem a audiência da série, a viralidade, o alcance, as visualizações, os comentários e as interações nas redes sociais. “Quanto mais a marca participa de maneira ativa e natural na trama da série, mais valor obtemos. O roteiro é muito importante para conhecer a trama e ver como nossos produtos podem participar de uma maneira natural, seja água ou cerveja. Em algumas séries podemos intervir mais e em outras a presença é mais passiva. A opção de colaborar e trabalhar em conjunto com os roteiristas é a que mais nos agrada e a que melhor sabemos fazer para integrar nossa marca”, afirma.

A executiva lembra que a marca foi pioneira em integrar um product placement virtual no cenário de uma série e avalia que o resultado dividiu águas no formato. “Nós consideramos, com toda a humildade do mundo, que reinventamos o product placement. Trabalhamos para inovar os formatos mais disruptivos e integradores de marca. Nas duas primeiras temporadas de La Casa de Papel alcançamos um passo mais alto e transformamos o product placement em uma ação que atinge o branded content.”

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Vai além de aparecer
O case de Estrella Galicia é apontado como um bom exemplo de product placement por Raul Santahelena, professor de branding na Miami Ad School/ESPM e autor de Muito Além do Merchan e Truthtelling. Para o profissional, o recurso é uma ferramenta de marketing que explora o melhor do mundo do entretenimento, com seus universos lúdico-narrativos poderosos e ricos de conceitos e campos simbólicos; e o mundo das marcas e da publicidade, com seu poder de fogo e potencial de construção de significado. A partir disso, o formato emerge.

O profissional observa, no entanto, que existem diferentes formatos de product placement: a presença da marca, do produto, com ele em uso ou não, com menção verbal ou não. E tem mais: pode ser ainda uma música na trama, um destino turístico, uma ideologia e até o reverse placement, quando um produto criado na ficção ganha o “mundo real”, como o restaurante Bubba Gump por exemplo, que só existia no filme Forrest Gump e virou uma rede nos Estados Unidos.

Com tantas possibilidades, não é de se estranhar que haja confusão sobre o que é a ferramenta. “Tem gente que confunde com adverteinment, branded content e ações de co-brand, que chamo de crossteinment. Adverteinment é o uso do entretenimento como ferramenta de marketing, o guarda-chuva dessas ferramentas, do qual product placement e branded content são modalidades. O crossteinment engloba as parcerias de promo & activation em que a marca explora o universo lúdico da propriedade intelectual em seus produtos e ativações, como a Coca-Cola edição especial Avengers ou Stranger Things”.

Ainda de acordo com ele, o recurso só deve ser usado de forma inteligente, sensível, contextualizada, respeitosa, para que ele seja bem aceito e funcione para os dois lados.

Pensando no Brasil, o especialista indica o case do canal Porta dos Fundos, que em sua avaliação tem feito um “belo trabalho”, pelo fato de o humor ser um universo mais amigável para as presenças contextualizadas de marcas e produtos. No caso da Netflix, séries como Stranger Things e La Casa de Papel merecem destaque.

“Em La Casa de Papel há a boa parceria com a Estrella Galicia, que é muito feliz, pois a marca consegue ativar uma série de atributos correlatos ao universo latino-espanhol-boêmio-rebelde que provavelmente interessa a eles explorar. E só na terceira temporada de Stranger Things foram fechadas 75 parcerias com marcas, desde o product placement a ações de crossteinment. A Coca-Cola, por exemplo, fechou um rol de ações como a presença bem contextualizada na trama, ajudando a reforçar os elos emocionais com a marca, e o lançamento de ações promocionais e uma edição especial da icônica garrafa de vidro com rótulo da série”, detalha Santahelena.

Como evoluir
Apesar de haver bons resultados em produtos atuais, o uso e aperfeiçoamento dessas ferramentas tem espaço para se desenvolver. Na visão de Santahelena, um dos caminhos é ter uma abertura maior e uma vontade mais franca de trabalhar em parceria, considerando todos os atores desse processo: da marca (gestores, agências de publicidade, BTL e digital) e dos produtores de conteúdo (diretores, roteiristas, atores…).

“Geralmente não é uma relação serena. É tenso. Trabalhando juntos, a parceria tem um potencial muito maior de dar certo, de contar com uma presença contextualizada na trama, fluida, natural, sem perder a força e o impacto que se deseja. Percebe-se, muitas vezes, uma presença mal encaixada, dura, que interrompe o flow da trama, gerando repulsa e estranhamento. Um tiro grande no pé”. Mesmo sendo complexo, a premissa primordial segue apenas uma: respeitar o conteúdo de entretenimento e o público que vai consumi-lo.