“Houston we have a problem!”. Com essa clássica frase do cinema, o CEO do maior grupo de comunicação do mundo, o WPP, Martin Sorrell, alertou os presentes à 64ª edição do Cannes Lions que chegou a hora de repensar o maior festival de criatividade do mundo, o Cannes Lions. “Toda a indústria está passando por mudanças tecnológicas e estruturais, e o Cannes Lions não pode ser diferente. Reconheço a importância do evento, mas ele cresceu demais, ficou caro demais, frenético demais”, disse Sorrell, ao comentar a decisão do Grupo Publicis de economizar dinheiro de inscrições em festivais no ano que vem (inclusive Cannes) para investir numa ferramenta movida a inteligência artificial e se tornar mais competitiva globalmente.
Independentemente do que levou o Grupo Publicis a anunciar sua ausência em premiações durante 12 meses, a decisão abriu a “caixa de pandora” em plena competição e dominou boa parte das conversas, entre um vinho rosé e outro.
Depois de divulgados tanto a decisão da Publicis, quanto o comentário de Sorrell sobre a necessidade de repensar o faustoso Cannes, a organização do festival anunciou a criação de um comitê para discutir o futuro. Que, segundo José Papa Neto, novo diretor-geral do Cannes Lions, será formado “no futuro próximo”.
O fato é que, embora tenha incorporado inúmeras disciplinas e passado a atrair empresas de muitas áreas para além da propaganda, as principais “clientes” do Cannes Lions continuam sendo mesmo as agências de publicidade, que dominam tanto inscrições quanto premiações. E é justamente para elas que se apresentam hoje os maiores desafios, a reboque da evolução tecnológica e dos hábitos mutantes de mídia das pessoas. Não está fácil promover as mudanças necessárias para evoluir e manter os padrões de remuneração históricos. A criatividade segue em alta, mas a receita anda em queda, sem falar na crise.
A principal crítica a Cannes é a “fanfarra das categorias” criadas, conforme descreve Guilherme Jahara, CCO da F.biz. “Hoje parece que vale mais quantidade de Leões que qualidade. Começa a virar ‘carne de vaca’. Economicamente parecia bom, mas começa a perder o sentido”, comenta.
Washington Olivetto, CEO da WMcCann e ganhador do primeiro Leão de Ouro brasileiro em Cannes, chama o Cannes Lions de “feirão da comunicação”. “O festival teve de sair de Veneza e o fenômeno se repete agora, pois Cannes está ficando pequeno para o número de participantes, eventos e atividades”, observa.
Bônus
Outro tradicional ganhador de Leões, João Daniel Tikhomiroff, da Mixer, afirma que o festival se transformou em um evento de “performance empresarial” no lugar da criatividade. “As grandes redes, na disputa pelos Leões, dão bônus em dinheiro para cada premiado de sua rede, e metas para os jurados de suas agências. Isso desvirtuou, tirou a beleza da criação e da produção. Isso sem falar dos anúncios fakes para garantir as ‘metas’. Tudo hoje gira nas ações nas bolsas”.
O CCO da JWT Singapore e diretor de criação global da JWT Worldwide, Marco Versolato, engrossa o coro dos que acreditam que o festival se transformou em uma “máquina de fazer dinheiro” – e muito cara para participar. Para ele, qualidade e critério se tornam duvidosos quando há tantos jurados. “Para mim, Cannes passou do limite e virou um negócio ganancioso e caro. Mas é preciso reconhecer o lado bom: quem vai, sai com vontade de estar no palco no ano que vem”, diz.
CCO da TBWA Los Angeles, Renato Fernandez afirma que Cannes sofre do mesmo mal que muitos eventos, incorporando palestras e painéis que pulverizam a atenção e carecem de boa curadoria. “Agruparia categorias, pois há muita duplicidade de ideias sem razão clara para isso, transformando one-hit Wonders em grandes vencedores do festival. Inflando de categorias, o festival reduz a importância das grandes ideias executadas de forma mais tática. E a guinada para um festival de publicidade tem um viés perigoso: vi trabalhos artísticos ganhando Leões usando critérios vagos”.
Expansão
Já PJ Pereira, CCO e fundador da Pereira & O’Dell, que esse ano presidiu o júri do Lions Entertainment, acredita que uma das soluções seria expandir o evento para duas semanas. A primeira cobriria a criatividade do negócio e a premiação propriamente dita, e a segunda discutiria o negócio da criatividade, com seminários, reuniões, análises sobre futuro e toda a premiação da semana anterior.
Outra sugestão de alguns profissionais – inclusive do PJ – é incluir clientes entre os jurados, em categorias como Entertainment. Marcelo Tripoli, da REF+T, concorda que colocar CMOs e CEOs poderiam fazer com que o impacto nos negócios do cliente passassem a ser critério para Leões.
Muitos jurados reclamaram, este ano, do processo de julgamento. Erh Ray, jurado em filmes, considera que o “pre judging” online – uma das consequências do imenso volume de peças inscritos – prejudica muitos trabalhos. E sugere que Cannes deixe de ter tantos patrocínios, um excesso de marcas espalhadas para todo lado.
Nizan Guanaes, da DM9, concorda: “O festival está incrível no conteúdo, mas precisa ter cuidado na embalagem e com patrocínios que afrontam a indústria e mandam mensagens erradas”, comentou.
Abel Reis resume o problema como uma crise de identidade do festival, sintoma de uma transformação mais profunda da indústria e do “alargamento” do seu sentido para além da publicidade, em direção a negócios e conteúdo.
De todas as ideias, a pior parece ter sido a do próprio Sorrell sobre mudar o local do evento: ir para uma grande capital como Londres, Berlim ou Nova York. “Cannes é o que é porque é realizado em Cannes. Mudar o festival de lugar seria perder sua identidade e diversas outras coisas legais que vêm com o fato dele ocorrer na Riviera, longe da realidade dos nossos escritórios e em um ambiente que possibilita conversas e conexões que são mais difíceis de se criar em outros ambientes de negócios”, conclui Fabiano Coura, diretor-geral da RGA no Brasil.