Pesquisa liderada pela jornalista Marcelle Chagas detectou que a comunidade periférica é uma das mais atingidas por notícias falsas

A população periférica é uma das mais atingidas por notícias falsas, um problema que se acentuou durante a pandemia de Covid-19. Essa é a conclusão do estudo de mestrado de Marcelle Chagas, jornalista e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense. Intitulado ‘Observatório de gênero, raça e territorialidades na ciência’, o trabalho analisa como o fluxo de desinformação e os regimes de confiança influenciam o tema, propondo o uso de dados qualitativos para subsidiar políticas públicas.

Marcelle conta que o estudo surgiu do contexto da pandemia, quando o excesso de informações, chamado de ‘infodemia’ pela Organização Mundial da Saúde, expôs o problema. Segundo ela, a crise de confiança nas instituições e a má qualidade da internet nas áreas vulneráveis aprofundaram desigualdades e transformaram a comunicação de saúde em um desafio central.

Como forma de mitigar esse cenário, que, por consequência, afeta comunidades quilombolas e indígenas, Marcelle fundou o GriôTech, desenvolvido para o Instituto Peregum. Em parceria com comunidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, a iniciativa investiga o uso de tecnologias e de inteligência artificial associadas a saberes ancestrais.

Em uma das ações, a equipe coletou palavras e impressões dos moradores sobre o que a tecnologia representava para eles. A partir dessas percepções, uma música foi criada com o apoio de IA generativa. “Foi uma forma simbólica de unir o que é ancestral com o que é digital. A tecnologia também pode ser uma ferramenta de pertencimento e de expressão coletiva”, comenta. A pesquisa resultará no relatório ‘Territórios digitais’, com lançamento previsto para o próximo ano, além de cartografias sociais que mapeiam como as comunidades percebem o impacto das tecnologias.

Marcelle Chagas, fundadora dos projetos GriôTech e Repcone | Imagem: Divulgação

Saúde mental

Marcelle aprendeu, na prática, que trabalhar com informação é também lidar com o peso invisível das histórias que se contam. O debate sobre saúde mental no jornalismo faz parte de seu trabalho. “A pandemia foi um divisor de águas. Percebemos o quanto estamos vulneráveis às notícias que reportamos”, diz.

A experiência com a Rede de Jornalistas Negros e o contato com colegas que atuam em contextos de violência e exclusão a levaram a criar ambientes de acolhimento. Desse olhar coletivo nasceu a Rede de Proteção Digital para Comunicadores Negras da América Latina (Repcone), que atua como resposta imediata a situações de violência e ataques virtuais. A iniciativa surgiu quando Marcelle percebeu que mulheres negras, especialmente as que ocupam cargos de liderança, eram as mais atingidas por agressões online. “A palavra que mais aparecia era ‘solidão’. Elas diziam: eu me senti sozinha, eu não sabia o que fazer”, conta.

A partir daí, estruturou uma metodologia própria de suporte rápido que combina orientação técnica, acolhimento psicológico e apoio jurídico, com o apoio de instituições parceiras como o Instituto Sankofa e a Associação Nacional de Advogados Negros.

Para Marcelle, a Repcone não é apenas uma resposta a ataques digitais — é também uma forma de transformar isolamento em comunidade. “Talvez não seja a solução, mas é uma solução baseada em experiência. A força do coletivo é fundamental”, afirma. A rede capacita pessoas em diferentes países da América Latina e desenvolve materiais com instruções práticas para quem sofre agressões virtuais. A proposta é agir no momento mais crítico, quando a vítima ainda está paralisada, sem saber para quem recorrer.

Como resultado de seus trabalhos, Marcelle foi convidada a integrar a Mozilla Foundation. “Enquanto muitos falavam sobre fake news de forma genérica, eu queria observar o território, entender o que molda a percepção das pessoas sobre o que é informação”, explica.

Além da produção científica, a jornalista atua na criação de políticas públicas voltadas à comunicação. Por meio da Articulação pela Mídia Negra, da qual é integrante, tem participado de debates sobre fomento e diversidade no setor, incluindo a proposta de um fundo de apoio a mídias negras e independentes.

Segundo Marcelle, porém, as negociações com o governo federal estão paradas. “No momento, a articulação pela mídia está se reestruturando, mas a relação com o governo a respeito do tema não tem avançado. Não há atualizações ou informações novas para além do que já foi feito”, afirma.

Para ela, iniciativas como essa são essenciais para que jornalistas e comunicadores comunitários possam continuar produzindo, mesmo fora dos grandes centros. “Ainda há um longo caminho, mas o diálogo com o governo precisa se fortalecer”, conclui.