Além do preconceito, uma das principais dificuldades enfrentadas por pessoas trans é a burocracia para retificar seus nomes. Por isso, no Dia Nacional da Visibilidade Trans – celebrado em 29 de janeiro -, a Starbucks se transformou em um cartório onde essa mudança seria realizada de forma gratuita. O resultado: houve um aumento de sete vezes na média anual de retificações na cidade de São Paulo.

Como reconhecimento, o trabalho Eu Sou, desenvolvido pela VMLY&R, conquistou o inédito GP em Glass para o Brasil no Cannes Lions 2021. O case é um exemplo daquilo que ficou evidenciado no festival deste ano: a importância de a marca assumir um propósito diante dos problemas da sociedade.

Rafael Pitanguy, CCO da VMLY&R, acredita que o Cannes Lions de 2021 concretizou o fato de que qualquer marca, que deseja ter uma troca relevante com os consumidores, precisa evoluir do awareness para a ação.

“Não basta mais um discurso bonito se esse estiver distante de uma atuação concreta. As grandes ideias, hoje, são as que implementam mudanças e não as que só falam a respeito do que deveria ser mudado”, disse. “Marcas precisam ser mais agentes e menos alto-falantes”, completou.

Chairman e CCO da Almap- BBDO, Luiz Sanches disse que os anunciantes estão caminhando para aumentar o protagonismo diante da sociedade. “Cannes apontou como as marcas têm aumentado o seu papel de responsabilidade social junto às pessoas. A pandemia está ressignificando o nosso valor junto aos clientes e o poder transformador da criatividade na modificação de uma sociedade mais diversa, justa, inclusiva e sustentável”, afirmou.

Luiz Sanches: pandemia está ressignificando o poder da criatividade (Divulgação)

Para o head of art da Ogilvy Brasil, Ricardo Leme, esse movimento é uma tendência que começou há tempos, mas que ganha cada vez mais adeptos. “Ter um propósito é o ponto de partida, é preciso fazer isso de forma inusitada, criativa e, o mais importante, gerar impacto na sociedade”, destacou.

Outra temática do festival deste ano, a diversidade foi reconhecida em muitos trabalhos, dentre os quais está o brasileiro Parada no Feed, GP em Entertainment Lions for Music. Feito para o Mercado Livre em parceria com a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, o trabalho da GUT São Paulo lotou virtualmente a Avenida Paulista, o palco tradicional da Parada do Orgulho, que ficou vazia com o cancelamento do evento por conta do avanço da pandemia, à época.

Na opinião do ECD da GUT SP, Bruno Brux, além de premiar ideias classificadas por ele como corajosas, o festival também foi provocativo, principalmente para os marketings dos anunciantes. “Womb Stories, Dove, Crocodile Inside e True Name são ideias extremamente corajosas, de anunciantes enormes. Ver essas campanhas serem celebradas no maior festival de criatividade do mundo não só inspira os criativos, como também provoca CMO’s a aprovarem outras ideias cada vez mais disruptivas”, ressaltou. 

Já para Sergio Gordilho, copresidente e CCO da Africa, as marcas se tornaram mais humanas. “E passaram a tratar o consumidor não como um consumidor, mas como uma pessoa, enxergando sua cadeia não apenas como uma cadeia, mas enxergando as famílias que estão por trás. E isso muda o jogo”, garantiu.

Com isso, ainda de acordo com o criativo, conexões foram feitas. “Pois voltamos ao core da nossa indústria: engajar, entreter, emocionar. E assim sendo, antes de converter, conectar”, disse.

Mariana Sá, CCO da WMcCann, acredita que a comunicação entre a marca e o consumidor se tornou mais horizontal, o que faz com que a publicidade também seja um expoente no debate sobre pautas importantes como inclusão, representatividade, equidade racial e legitimação das vozes que, por décadas, não tiveram espaço.

“Além disso, fica claro que adaptar a comunicação para os meios digitais é um caminho sem volta. É nesse ciberespaço que as conversas estão ocorrendo e é ali que as marcas precisam estar. Também vemos uma grande presença de tecnologia com o objetivo de oferecer escala, experiência e melhorar a vida das pessoas de alguma forma”.

TECNOLOGIA
A presença de marcas em ambientes virtuais cresceu e mostrou, durante o Cannes Lions 2021, que se trata de um caminho quase que obrigatório para quem deseja conversar com diversos tipos de público, sobretudo o mais jovem.

Pesquisa realizada pela consultoria Newzoo mostrou que o Brasil tem 90 milhões de gamers e movimenta em torno de R$ 10 bilhões, número que cresceu 25% no ano passado, muito por causa da pandemia de Covid-19.

Mais de 24 milhões consomem o conteúdo de eSports, apontou ainda o levantamento, o que coloca o Brasil na terceira posição mundial em audiência, atrás apenas de China e dos Estados Unidos em números absolutos.

E exemplos assim não faltam, mas, talvez, o mais emblemático seja o da David Miami/ Madri para Burger King. Em #StevenageChallenge, a rede de fast-food anunciou que estava patrocinando um pequeno clube da Inglaterra, o Stevenage.

O objetivo da marca era tornar o clube mundialmente famoso, por meio de um game e, para isso, o trabalho convidou jogadores a competirem em uma série de desafios dentro do Fifa 2020. Em troca: ganhariam sanduíches.

CCO da Cheil Brasil e Latam, Marcelo Droopy vê como uma tendência as marcas mesclando criatividade com tecnologia. “É só olharmos o número de ideias baseadas no mercado gaming que foram premiadas”, afirmou. E o executivo tem razão, já que quatro Grand Prix foram dados a cases que se utilizaram da tecnologia do games, como o #StevenageChallenge, GP em Social & Influencer, Direct e Brand Experience.

De acordo com Thomas Tagliaferro, CEO da TracyLocke, “Cannes mostrou os desafios do mundo e o avanço acelerado das estratégias digitais. O festival nos fez refletir sobre o que se passa na vida das pessoas e o papel que as marcas devem cumprir com seus consumidores. Além disso, há a importância cada vez maior da empatia nos projetos como inspiração para a criatividade”, disse.

FORMATO ONLINE
Cannes entrou para a história em 2021 pelo seu formato totalmente online, ainda por conta da pandemia de Covid-19. A edição do ano passado teve apenas palestras, debates e conteúdos online, sem premiação. Luiz Sanches, que foi presidente do júri em Outdoor, destaca a importância do festival para a indústria, mesmo remoto, mas diz ser inegável a diferença do encontro presencial, em todos os aspectos.

“Como jurado, acho que o presencial acaba ajudando muito na defesa de trabalhos com um viés mais cultural. Já vi muito case que nem tinha virado shortlist ser resgatado e virar Leão, uma vez que você tem mais tempo ali para um diálogo e defesa da peça”, contou.

Gordilho: discussões são importantes (Divulgação)

Já como conteúdo, segundo ele, o festival é a valorização do ambiente criativo e, para isso, precisa ter networking e experiências.

“Cannes é uma vivência criativa muito além de uma competição sobre qual peça foi mais relevante naquele ano. É um local rico em cases, palestras, bastidores e conversas que ajudam a nos inspirar e impulsionar criativamente”, disse Sanches, que aposta em um formato híbrido nas próximas edições.

Rafael Ziggy, head de creative data na Soko, também acredita em formatos híbridos nos anos seguintes. “Acredito que o maior potencial seja de um formato híbrido para o festival, na experiência on demand aliada ao evento acontecendo de maneira presencial”, disse. “As conexões e trocas que ocorrem no evento presencial são insubstituíveis”, completou.

Gordilho disse que este foi “um ano de pouca discussão”. “Discussões precisam ser acaloradas, pois acredito que é do atrito que saem as melhores coisas. Quando paramos de colocar nossos pontos e nos acomodamos com o status quo, a vida fica boring, o trabalho também. Criatividade precisa de fagulhas para pegar fogo”, ressaltou.

E Vinicius Stasnzione, VP de criação da Leo Burnett TM, concorda. “A maioria de jurados e criativos sentiu muito a falta de uma discussão mais acalorada, do debate olho no olho e de sentir a energia que só esse festival tem, mas acredito que é totalmente possível funcionar num formato híbrido”, disse.