Eu não tenho opinião formada sobre a questão das cotas. Aliás, tenho sim, estou sendo leviano. O problema é que eu mudo de opinião umas dez vezes ao dia. Nenhum argumento, contra ou a favor, me pareceu definitivo. É claro que estou a favor da ideia de democratizar as oportunidades de estudo e consequentemente de ascensão social para todos os brasileiros. Mas nem todo o tempo concordo que esta seja a melhor forma. Essa dubiedade não me é estranha na vida. Tenho pelas pessoas que possuem opinião firme sobre tudo a mais profunda e babadora inveja. Vivo em dúvida com as minhas convicções, mesmo as mais profundas.

Se algumas tenho mantido, sei quanto me custa internamente a briga. Por exemplo, já que falei em cotas. Minha mulher adora usar o que ela acha que seja (e definitivamente é) um direito meu: de ter preferência nas filas por ser considerado idoso. Isto é, ter mais do que 65 anos. Eu acho um horror. Pago entrada inteira, fico na fila do avião, espero chegar minha vez no caixa do supermercado, mas não fico ostentando minha velhice com orgulho.

Afinal ainda trabalho – muito –, como e bebo – muito –, faço minhas salienciazinhas com toda a alegria e disposição – minto. Não acho justo, já que me sinto jovem, ter vantagens de velho. Por exemplo, a fila do avião, sacrifício que minhas atividades me impõem uma vez por semana. Existe a tal fila das “prioridades” que inclui idosos (melhor idade é o cacete), portadores de cartão de crédito ouro e platinum e portador de cartão de milhagem categoria picão. Tenho tudo. Pois reluto em passar na frente. É bem verdade que, na maioria das vezes, alguém me descobre na fila e me dá passagem: “O senhor é por aqui!” Algum tempo atrás o Dualibi veio me buscar para usarmos juntos nossa prioridade de velhos. Só para poder desfilar ao lado dele eu não fiquei morrendo de vergonha. Até aí tudo bem. Mas quando é a mocinha tipo daquelas que até ontem a gente comia, o clima fica mais pra fim de festa. “O senhor não quer passar na frente?”. – “Não, porra, quero continuar olhando teu rabo!” Nunca disse isso. Pensei. E passei na frente – olha o velhinho aí pessoal!

Pior de tudo foi no ônibus do aeroporto. Uma moça de seus magníficos 30 e poucos anos, elegante e gostosamente vestida, tipo tesão discreto, ficou me olhando. Eu olhei para um lado, olhei para outro, não vi ninguém devolvendo o olhar e achei que era comigo mesmo. Dei-lhe um sorriso da minha melhor coleção de sorrisos categoria “engrenemos um papo”. Ela fez cara de que o ônibus estava cheio. Eu fiz cara de que a vida só vale a pena se a alma não é pequena. Como é essa cara? Sei lá. Cara de inteligência, enfado, sabedoria, concupiscência, profundidade e pau grande. Tudo junto.

Ela então levantou-se e me disse: “o senhor não quer sentar?” Não fui eu que tomei o assento. Foi minha alma em frangalhos, a xepa de meu amor próprio, o restolho de minha autoestima. Uma vez eu usei e abusei do direito à prioridade. Foi quando, há alguns meses, tive hérnia de disco. Que não é coisa de velho. Pode ser de atleta também. Durante alguns dias não pude andar. Literalmente. Até que o grande dr. Paulinho Niemeyer me devolvesse os movimentos, tive de usar cadeiras de rodas.

Daí foi muito bom existir a possibilidade da preferência, principalmente no caso dos aviões. Passei a ter direito à fileira número 1, ser conduzido até o avião, entrar na frente e ganhar paparicos de comissários e comissárias. Aí é gostoso. O único senão foi quando pedi para me darem o assento da saída de emergência. Muito gentilmente a moça me explicou ser impossível: “esse lugar é para quem pode ajudar os outros a abandonar a aeronave”. Eu só iria atrapalhar. Fui para outro lugar. Se o avião caísse eu teria morrido. Afogado ou torrado. Imaginei a manchete dos jornais: “Idoso é a única vítima na queda do avião”. E eu sem poder retrucar. Idoso é a mãe.

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)