Antes de mais nada, confesso que este artigo é um roubo. Uma apropriação indébita. Uma tunga. Plágio de um verbete do livro de autoria do professor Claudio Moreno chamado O Prazer das Palavras lançado pela Editora L&M. Bem, valho-me da autodelação e espero ser premiado com a compreensão dos leitores, se é que os tenho. Diz o Claudio Moreno que um amigo seu foi surpreendido recentemente em Lisboa por uma enorme manifestação dos estudantes contra o aumento das propinas.
Segundo esse amigo, o taxista que o transportava não deixou de apoiar os manifestantes, pois considerava que as propinas estavam pela hora da morte, um absurdo, pois há que haver bom senso nesse custo, ora pois. Antes que esse amigo considerasse Portugal infinitamente mais corrupto que o Brasil, onde a propina ainda não atingiu o caráter oficial, foi necessário esclarecer que, em Portugal, a palavra significa apenas o valor da anuidade escolar, com direito a recibo e desconto no Imposto de Renda. Do alto de seu vasto conhecimento da origem das palavras, Moreno explica que a origem da palavra vem do grego antigo, propinein, de pro (antes) e pinein (beber). Propina, portanto, queria dizer apenas um brinde. Quando o verbo foi para Roma, virou propinare e passou a significar simplesmente “convidar para beber” e mais tarde evoluiu para “dar de beber, servir”.
Por isso no tempo do Papa Leão XIII os exorcistas diziam: “cesse decipere humanas criaturas, eis que a eterna perdition isvene num propinare”, que quer dizer mais ou menos “porra, diabo, para de enganar os caras e assim ministrar o veneno da perdição eterna”. O porra não está no livro do Moreno nem acredito que fizesse parte do oratio. Mas que dá uma força maior no exorcismo, isso dá. “Sai, capeta!” Voltemos à propina, que é o tema. Já no século 19, os escritores portugueses clássicos usavam e abusavam da propina para alertar, como Macedo o fez, que as Circes poderiam prometer prazeres, mas propinavam veneno.
No século 18, o sentido da palavra mudou um pouco, passando a designar a bebida que se pagava a alguém para premiar um bom serviço. E, por extensão, a graninha que substituía o gole, mas servia para agradecer. Nos países de língua espanhola, a palavra propina passou a querer dizer gorjeta. Aquilo que se dá ao garçom, ao carregador e eventualmente ao guarda de trânsito para recompensar sua boa vontade. No Brasil, jabuticabamente, nós invertemos o tempo da gratificação. Propina aqui é paga antes às autoridades corruptas, não depois. Espertamente o corrompido passa a mão na sua recompensa antecipadamente, já que não se deve confiar num brasileiro. E, criativos como somos, inventamos variações para o termo, como pixuleco, agrado, faz-me-rir, contribuição, doação, repasse, apoio à campanha. Tudo propina, mas o eufemismo parece diminuir o impacto do termo revestindo de uma certa cafajestagem malandra.
E, como todo criminoso, o problema é não conseguir parar, assim continuo com o professor Moreno e passo para a gorjeta, cuja origem também está ligada à bebida. Gorja é um sinônimo de “garganta”, veja só, amplamente usado por escritores do século 19. Logo, gorjeta era algo para “molhar a garganta”, que em mais úmidas eras representava a mais simpática maneira de premiar alguém por um trabalho feito.
Fico aqui pensando, com os meus suspensórios, que da quase ingênua propina de antanho, as gargantas profundas dos propinados não foi aumentando de tamanho a ponto de botar em risco o país inteiro. Ficássemos satisfeitos com os agrados líquidos, estaríamos no máximo sofrendo de cirrose, não tendo de prender governantes que se afogaram em seus Romanée-Conti safra 97. Antes de colocar um pingo final nesta croniqueta, alerto que, apesar de ter surrupiado os ensinamentos do professor Moreno, a maioria dos comentários é de minha autoria.
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)
Leia mais
Propaganda fortifica
Do hambúrguer de minhoca às eleições: as “fake news” contra a democracia