Ando fascinada pela atualidade das frases de Nelson Rodrigues, em como refletem o zeitgeist em que nos encontramos e principalmente a alma humana. Sua boca suja e refinada ao mesmo tempo escancarou uma dicotomia toda nossa, que nos define. Nelson Rodrigues não foi um fingidor: escancarou o que há de pior na humanidade. Como disse Ed Motta (por onde anda?): o mundo é maravilhoso, o ser humano é que não é legal – uns mais que outros, naturalmente.
Algumas dessas frases são quase impronunciáveis. Algumas, confesso que havia decidido nunca repetir, porque me afetam particularmente, e também porque (ingenuamente?) as rotulei como datadas. Como essa: “Na mulher, certas idades constituem, digamos assim, um afrodisíaco eficacíssimo. Por exemplo: 14 anos!”. E esta: “Todas as mulheres deviam ter 14 anos”. Ou ainda duas versões sobre o mesmo tema: “Nem toda mulher gosta de apanhar. Só as normais” e “Toda mulher gosta de apanhar. Só as neuróticas reagem”.
Lembrei-me delas na semana passada, quando se tornou público o assédio sexual do ator José Mayer a uma jovem figurinista, que durou oito meses até finalmente ser denunciado. O resultado foi uma carta de desculpas bastante patética assinada pelo ator e sua suspensão por tempo indeterminado pela TV Globo.
Mayer incorporou o inesquecível personagem-clichê “Tio Sukita”, criado nos anos 1990 pela então Carillo,Pastore: um homem maduro que tenta parecer jovem e ser cool diante de uma adolescente, em comerciais lembrados até hoje. Nosso tio Mayer Sukita não será o último de sua espécie, mas, publicamente, possivelmente o derradeiro. Imagino que se encerre aqui a possibilidade de flagrar um galã máximo da Globo assediando de maneira grotesca uma companheira de trabalho. Condenado em praça pública por seus pares, Mayer foi reprovado em uma época de tolerância mínima para delitos da espécie. Isso me faz pensar na responsabilidade de todos e em como comunicadores e também profissionais que trabalham com produção de conteúdo de uma maneira geral, com ficção, em especial o humor, têm, de uma forma ou de outra, colaborado para perpetuar nossa cultura machista, homofóbica e intolerante.
É um tema polêmico, e tenho conversado bastante com colegas roteiristas, por exemplo, sobre o que faz sentido hoje no humor. Uma das melhores argumentações ouvi do ator Gregório Duvivier outro dia, em entrevista à cartunista Laerte: “Eu sou a favor de ouvir as pessoas que não estão rindo. Em geral, os críticos da ‘patrulha ao politicamente correto’ são brancos, heterossexuais e cis, e não as minorias”.
Tudo o que soa cada vez mais anacrônico hoje, porque estamos nos tornando mais conscientes e responsáveis, continua impresso, de diversas formas, na alma humana, e foi construído como cultura ao longo do tempo. Talvez seja preciso ficarmos mais atentos à repetição: é ela que ajuda a perpetuar o que não queremos – mais. Por isso opto por não repetir aquelas frases de Nelson Rodrigues, que tanto me incomodam. Porque, sim, elas mostram o pior das pessoas. E porque ainda refletem, infelizmente, pensamentos “de uma geração” – como disse tio Mayer Sukita na carta-resposta divulgada às pressas para justificar suas atitudes desrespeitosas.
Há uma escolha entre propagar velhos pensamentos e difundir ideias novas, frescas e construtivas. Ajudar a transformar talvez seja começar por aí: escolhendo as ideias novas e deixando para trás algumas que se tornaram obsoletas, ou perderam o sentido. Porque, cá pra nós, cito novamente uma letra de música, cantada pelo Frejat: “Rir é bom, mas rir de tudo é desespero”.