Estava atrasado com a coluna. Suspendi uma reunião para atender às cobranças da querida editora do PROPMARK, já que o prazo findava e ela tem de atender à agenda de produção. No caminho para o escritório recebo a notícia da morte de um querido irmão, o Zé Rossi (José Arnaldo Rossi), um dos seres humanos mais surpreendentes que já conheci na vida. Um empresário de sucesso, financista consagrado, autoridade no mercado segurador e, ao mesmo tempo, um dos mais profundos pensadores com os quais eu tive (que merda ter de começar usar o passado) o prazer de conviver.
Um filósofo que distribuía com absurda generosidade suas reflexões a respeito dessa nossa passagem pela terra. Essa morte vem se somar a muitas outras perdas que andam se avolumando, me lembrando inclusive que a filha da puta da ceifadora anda rondando nossa turma. Se eu pudesse, chamaria a escrota e lhe proporia uma trégua, uma espécie de intervalo, para que as porradas não se sucedam tão amiudamente. Nestes últimos tempos, foram chamados Valdir Siqueira, Margarida Ramos, Carlão e, surpreendentemente, o Miele, com o qual estávamos armando projetos encantadores, dos quais só restou um livro.
E por falar em saudade (Vinícius), deixe-me contar uma história do Miele. Como em velórios caipiras, falar do morto é uma forma de chorá-lo. Vai lá minha contribuição. Miele era dono de uma boate chamada Monsieur Pujol, que fez grande sucesso no Rio de Janeiro na década de 1970. Sucesso de público e crítica, já que era um endereço badalado e estava sempre cheia, mas um tremendo fracasso financeiro, eventualmente porque os donos e os amigos dos donos eram os maiores consumidores da casa e não tinham o saudável hábito de pagar a conta.
Em outras palavras, o estabelecimento vivia na maior pindaíba, devendo a todo mundo e sempre com o risco de sofrer uma ação de despejo. Vai daí que num determinado dia ocorre na cidade um casamento de arromba, nível internacional, daqueles de sair semanas a fio nas colunas sociais. Veio gente do mundo inteiro para prestigiar a festa, com direito a iates e jatinhos particulares congestionando os aeroportos. Os convidados de fora lotaram os hotéis de luxo como Copacabana Palace, Glória, Sheraton e Meridian. A festa foi uma esbórnia inesquecível.
No dia seguinte da festança, os pais da noiva resolvem levar alguns convidados internacionais para jantar e escolhem justamente o Monsieur Pujol, que tinha no começo da madrugada um belo show com algum artista famoso. Fazem uma mesa gigantesca e mandam ver no champanhe e no caviar, gastando uma verdadeira fortuna a cada minuto, para total felicidade do Miele que ia fazendo as contas mentalmente. A cada rodada de champanhe, de uísque 24 anos ou de caviar beluga, o Miele raciocinava: está salvo o aluguel, aí vai o papagaio do banco, amanhã tem festa no açougue e assim por diante. Lá pelas quatro da madrugada pede-se a conta. Foi mais ou menos por estimativa, já que a certa altura não deu mais para controlar. Mas era uma quantia fantástica, a verdadeira salvação da lavoura do Miele. Ele ainda bancou o gostoso dizendo: “pode deixar, mando a conta amanhã para seu escritório”. Mas o freguês fez questão de pagar ali, na bucha. Sacou um talão de cheque do banco que ele era dono (o que afastaria a hipótese de qualquer problema com ausência de fundos) e arredondou o valor. Só a arredondada – segundo o Miele –, já dava para fechar a folha de pagamento do mês inteiro e nem pediu nota fiscal.
Miele estava aos prantos. Tanto ele quanto o maître foram levar os ilustres convidados até a saída da boate, que tinha uma bela escadaria de mármore descendo para a rua. Estavam trocando amabilidades quando lá do fundo vem uma vozinha: “Hei, mister, psiu!” Era um garçom balançando um papelzinho. Fez-se silêncio, na expectativa de se descobrir o que estava ocorrendo. O cara abre espaço entre as pessoas, mostra o papelucho para o milionário e diz: “Doutor, o cigarro não está incluído!” Miele afasta o inoportuno dizendo, entredentes, que ele pagaria. Mas o fulaninho não entendeu direito o recado e continuou: “O cigarro é por fora, é uma gentileza da moçada aí pros fregueses, tá me entendendo?”. Miele, no desespero, dá um empurrão no infeliz para se livrar do mal-estar. Mas calculou mal a força, ou a raiva deu uma turbinada, e o resultado foi que o pobre garçom desabou escadaria abaixo, catando cavaco. Pior: foi levando as pessoas, num festival de peles, bolsas de grife, sapatos de crocodilo. A porta que dava para a rua era de vidro, não resistiu às trombadas e ruiu.
O bolo de gente se esparramou pela calçada. Miele no topo da escada, vendo aquela zona toda, aquela barulheira imensa, tentou manter sua fleuma e acenava para as pessoas como se nada tivesse acontecido, como se aquela fosse a mais natural maneira de se sair de uma boate. “Apareçam sempre, apareçam sempre!” Não foi por isso que o Monsieur Pujol fechou.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor