Havia meses que eu estava jogando Metal Gear Solid 4 – Guns of the Patriots. Jogo incrível, tecnicamente perfeito e altamente imersivo, que exige uma entrega emocional muito maior do que simplesmente apertar botões de forma ordenada. Muito disso se deve ao roteiro do jogo e à sua linguagem cinematográfica, que mistura ação, história, geopolítica e dramas com contornos shakespearianos. Sabe quando se discute se jogos de videogame podem ser alçados à categoria de arte? Isso ocorre por causa de jogos como Metal Gear.
Pois bem. Eu tinha acabado de terminar Metal Gear 4. Uma linda sequência em animação encerrava a jornada do protagonista Solid Snake enquanto uma versão melodramática da música Here’s to You tocava. E, se eu comecei falando de videogame, agora passo a falar de música.
Here’s to You é uma das minhas músicas preferidas da Joan Baez que, por sua vez, é minha cantora preferida. Ela criou essa música com o Ennio Morricone, que dispensa apresentações. A música tem apenas quatro vesos, e eles bastam:
Here’s to you, Nicola and Bart
Rest forever here in our hearts
The last and final moment is yours
That agony is your triumph
Essa música foi trilha sonora do filme Sacco e Vanzetti, dirigido por Giuliano Montaldo em 1971. E assim, do videogame fui à música e da música cheguei ao cinema, onde já aviso que não vou parar. Porque Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram dois anarquistas italianos executados em 1927, nos Estados Unidos, em um processo judicial claramente político e viciado (é, às vezes isso ocorre…). Eles foram condenados à morte, mesmo após o verdadeiro culpado pelo crime admitir a sua autoria.
E o que começou no tema “videogames” agora chega ao campo da história e até da política. Tudo isso só para, finalmente, expor essa conclusão que de tão verdadeira é quase óbvia: criar é cruzar referências e, consequentemente, quanto mais referências, maiores as possibilidades criativas.
Nasci na periferia de Guarulhos em uma família incrível. Sabe aquela família classe C que aparece nos slides do pessoal de planejamento? Bem ali.
Mas, se em casa nós tínhamos aquela coisa divertida de núcleo pobre de novela, do portão para fora a realidade era outra, com vizinhos e amigos realmente pobres. E aí, em um desses incidentes incitantes das aulas de roteiro, ganhei uma bolsa de estudos no melhor colégio da cidade, onde convivi com aqueles que são meus melhores amigos até hoje. Pessoas que, na época, tinham muito mais dinheiro do que eu.
Parem os violinos, não é disso que eu vou falar. Quero, na verdade, mostrar como essa mistura de realidades é importante. Esse caldeirão cultural, longe de ser um ponto fraco, foi meu grande trunfo. Porque, afinal de contas, nosso material humano é gente. E não tem focus group melhor que a vida real.
Tem uma joia improvável do Baudelaire chamada O Spleen de Paris. Livrinho delicioso, simples, com pequenos poemas em prosa. Em um desses poemas, encontrei o seguinte trecho: “Quanta coisa estranha não se pode ver numa grande cidade quando se sabe passear por ela e olhar! A vida fervilha de monstros inocentes.”
O ônibus 408, que sai da estação Armênia, sempre esteve cheio de vida e desses monstros inocentes. Mais de 10 anos depois, minha vida está muito diferente, mas todas essas experiências continuam comigo, formando um vasto anedotário que eu guardo com graça e carinho. E ao qual eu sempre recorro em meu trabalho.
Ao longo dos anos, transformei a flânerie, o passeio e a observação em método. Gente é mais que target. É combustível, é inspiração. E vida é aquilo que ocorre enquanto a gente está criando fantasmas para Cannes.
Jairo Anderson é diretor-executivo de criação da VML