Uma perspectiva populista de liderança, pontuada por esdrúxulas promessas – como construir um muro na fronteira com o México, deportar 11 milhões de imigrantes, promover um Brexit multiplicado por cinco e proibir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos –, acabou levando o magnata republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, contrariando todos os prognósticos feitos por institutos de pesquisa. Ele surfou bem na onda de desconforto dos americanos com a recessão, a globalização e o terrorismo, e derrotou a democrata Hillary Clinton, aposta da maioria. O mundo inteiro quedou-se perplexo diante do resultado, especialmente a maior parte dos Estados Unidos.
Por lá, institutos andam fazendo mea culpa, como é o caso da Ipsos, que emitiu comunicado afirmando que conduzirá uma revisão completa a respeito de por que as pesquisas de intenção de voto não consideraram a vitória de Trump. Uma das hipóteses é o altíssimo número de abstenções de votos, quando as pesquisas assumiram 60% de participação média, hipótese que se mostrou incorreta. No voto popular, na média apurada pelo site RealClearPolitics, Hillary venceria por 3 pontos. A candidata democrata na verdade venceu, por 0,3% – diferença tecnicamente justificada por margens de erro. As projeções da USC Dornsife/LA Times, badalada como a única que acertou, previam 3 pontos de vantagem para Trump no voto popular – mas o republicano perdeu no voto popular. Um dos especialistas em estatística americanos, Nate Silver, previu que Hillary Clinton teria 71% de chances de vitória.
Até a Associação Americana de Pesquisa de Opinião Pública admitiu publicamente estar analisando o que pode ter levado aos equívocos. “As pesquisas claramente erraram. Embora Hillary tenha vencido no voto popular, sua margem foi muito menor do que os 3% ou 4% previstos nas pesquisas. E muitas pesquisas em estados superestimaram o nível de suporte a Hillary. Como fizemos em diversas eleições, convocamos um painel de especialistas para conduzir uma análise post-hoc das pesquisas de 2016”, declarou a associação em comunicado.
O processo de eleições americanas é complexo, o voto não é obrigatório e depende de inúmeros fatores para além da contagem final das urnas (onde, por sinal, Hillary venceu, ainda que por pouco), como a força dos delegados de cada estado, mas é no mínimo curioso que não se tenha previsto a vitória de Trump. Guardadas as devidas proporções, fenômeno semelhante ocorreu em algumas capitais brasileiras nas últimas eleições municipais, a exemplo da vitória no primeiro turno do candidato João Doria Jr., na Prefeitura de São Paulo. Poderiam ser estes indícios de enfraquecimento dos métodos mais tradicionais de que se valem os institutos de pesquisas na área política?
Cuidado
Fábio Gomes, do Instituto Informa, afirma que o complexo processo eleitoral dos EUA nem sempre é tratado com o devido cuidado pelos institutos de pesquisa que utilizam, em média, amostras com cerca de 3 mil entrevistas. “Para avaliação da opinião pública geral, é uma boa amostra. No entanto, para o instituto ser preciso na projeção nacional, é fundamental ser preciso também nas projeções estaduais – afinal, é a vitória em cada estado que determina os votos dos delegados para a câmara dos representantes. Com uma amostra de 3 mil entrevistas não é possível alcançar projeções seguras em cada um dos 50 estados. Os erros nas projeções nos estados promovem os maiores equívocos nos resultados de pesquisas nacionais nos EUA. Seria necessária uma amostra superlativa em microtendências estaduais, assim as chances de acerto seriam maiores”, avalia.
Segundo ele, no caso americano, além da complexidade das regras do jogo das eleições, a base do eleitorado é muito vulnerável. Com voto facultativo, e variados segmentos eleitorais, os métodos devem ter inúmeros mecanismos de cálculo da amostra e controle dos processos de apuração. E sugere que os institutos americanos mudem a projeção dos resultados dos índices de intenção geral para projeção de delegados de cada candidatura. “Remissão para os erros dos institutos somente haverá com outra eleição. Os institutos americanos ainda sofrerão pesadas críticas nas próximas semanas. E os argumentos dos erros voltarão a ser usados pelo segundo colocado nas pesquisas daqui a quatro anos. Berço das pesquisas eleitorais no mundo, com os inspiradores Paul Lazarsfeld e Robert Merton, os Estados Unidos são uma vitrine para o mundo e, por isso, o episódio tem potencial para promover algum estrago para o setor e levantar contestações no Brasil também. Mas pode haver remissão na próxima eleição”, diz Gomes.
Márcia Cavallari, CEO do Ibope Inteligência, afirma que nos EUA as pesquisas mostravam a disputa apertada com diferenças entre os dois dentro das margens de erro. “O problema está na projeção feita a partir dos resultados das pesquisas. Em toda projeção é preciso assumir algumas premissas e elas podem não ter sido as mais adequadas para a conjuntura da eleição americana. Lá não há obrigatoriedade do voto, por isso é preciso prever o perfil do eleitor que está disposto a votar com base em históricos passados e neste ano pode ter sido diferente”, analisa.
Márcia lembra que as pesquisas não são infalíveis, pois seus resultados não representam números exatos, mas sim estimativas. Mostram tendências, mas não projetam o futuro.
Já Zilda Knoploch, CEO da Enfoque Pesquisa, acredita que pode ter ocorrido uma falha de representatividade do país nas pesquisas, o que contribuiu para o erro nas projeções, pois as pesquisas de intenção de voto em si não erraram, uma vez que Hillary venceu nas urnas. “Numa pesquisa existe uma margem de erro amostral, em geral de 2%, e esta colocaria o resultado como empate técnico. Trump fez intensa campanha até o dia da eleição em quatro a cinco estados considerados estratégicos e swing states, de onde veio a expressiva votação a seu favor. Parte da explicação vem desta atuação no dia da eleição”.
No caso das eleições americanas, Zilda afirma que a questão mais intrigante é por que uma pessoa como Trump, com uma pegada populista, de extrema direita, teve esta meteórica ascensão e vitória. “Parece haver uma ânsia de parte da população – aliás como aqui –, saturada da figura do político tradicional, seduzida por uma ‘celebridade’, uma figura que grita, esbraveja, age fora do protocolo, faz baixarias, e consegue a identificação de pessoas em geral frustradas com seus valores individualistas e ambições materiais. Trump representou a catarse que muitos gostariam de fazer e alguns só resolvem fuzilando pessoas. Outros ficam calados, mas votaram”, disse a especialista.
Há quem acredite que, no caso de eleições de uma maneira geral – tanto brasileiras quanto americanas -, a intenção de voto em um candidato polêmico pode ser, em diversos aspectos, tão eticamente incorreta, que muitos não a confessaram nem para si. “Pesquisas ficam prejudicadas quando a busca mexe com coisas muito profundas do ser humano. Quem se declara, por exemplo, antiético? No final, manda o egoísmo das pessoas. O candidato que vai lhes beneficiar de alguma forma. O que se declara, em tempos tão intensos como os atuais, é muitas vezes diferente da ação real”, especula Bob Wollheim, head digital do Grupo ABC. É o chamado “voto envergonhado”, como define Jaime Troiano, presidente da Troiano Branding. “As patrulhas sociais impedem muitas pessoas de revelarem para um terceiro a sua preferência eleitoral”, comenta Troiano.
Poder
A inevitável volatilidade de opiniões e desejos tem uma dinâmica mais poderosa do que a precisão dos instrumentos de medida, segundo observa Troiano, o que tornaria medidas flagrantes mais precisas do que as que procuram ter caráter projetivo. Márcia, do Ibope Inteligência, reconhece que os eleitores estão tomando suas decisões cada vez mais no último minuto. Isso tem levado os institutos a buscar continuamente novas metodologias. “Aqui no Brasil, vimos um contingente enorme de eleitores que decidiram o voto no dia da eleição e a pesquisa não tem o papel de prever o futuro, pois mede a decisão que a pessoa tem em determinado momento. Essa volatilidade está mais acentuada em relação aos anos anteriores, por conta da velocidade das informações pela internet e redes sociais”, reconhece.
No caso das eleições municipais recentes, ela afirma que de fato são muito dinâmicas e acabam levando eleitores a decidirem no último momento. “A pesquisa divulgada na quarta-feira anterior ao primeiro turno mostrava, por exemplo, que 39% dos eleitores declaravam precisar de mais informações para definir o voto. O último debate e os fatos que surgiram nos últimos dias da campanha contribuíram para o eleitor formar sua opinião e decidir seu voto nos últimos momentos da campanha”, comenta.
Armando Strozenberg, CEO da Z+ no Brasil e presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), resume o cenário ao dizer que o que vivemos, todos, tempos fluidos – ou líquidos, como ele gosta de chamar seu ídolo pós-moderno, Zygmunt Bauman. “Em consequência, há claras indicações de que ficou bem mais complexa a captação, e a classificação, de uma série de movimentos humanos. É muito próvável que os mecanismos de percepção tradicionais não estejam dando mais conta de suas tarefas por inteiro. Ouso afirmar até que hoje, talvez, algumas decisões eleitorais só estão sendo tomadas na cabine, diante das urnas. E, em alguns casos, seguidas de crise de culpa”, avalia.